28.9.05

O seu filho – manual de instruções

Dizer que ser pai encerra uma faceta negativa soa a heresia. A verdade é que essa faceta existe. Descobria-a ontem, na primeira vez que assisti a uma reunião dos “papás e mamãs” no infantário. Esse lado negativo da paternidade é ter que aturar os outros “papás e mamãs”. Parece um brainstorming de puericultura: os pressurosos progenitores trocam experiências pessoais, dizem como os respectivos petizes se comportam em determinadas circunstâncias. Depois entram numa estúpida competição: se a filha de uma faz isto, logo a seguir outra retorque que a dela faz ainda mais. Parecem os minhotos cantares ao desafio. É ver qual o menino que se distingue pelas maiores façanhas.

E depois há os “papás e mamãs” que prolongam desnecessariamente a reunião com perguntas que podiam reservar para o contacto pessoal com a educadora. Que me interessa partilhar com esses “papás e mamãs” se o bebé está a beber o leite pela palhinha, se os suissinhos devem ser comidos todos os dias, se o “controlo esfíncteriano” (eufemismo técnico para crianças que estão a começar a deixar a fralda – aprendi) está a ser um sucesso, ou se os petizes mostram laivos de precocidade que os coloca no pedestal das crianças super-dotadas?

O inquérito é desfiado à exaustão. “Papás e mamãs” dedicados e ansiosos com o desenvolvimento do filho encharcam a educadora com perguntas cujas respostas encontram naqueles livros de puericultura que abundam nas livrarias. São doutoras e engenheiros encartados que mostram a mais profunda ignorância. Vertem-na ali, à frente dos outros “papás e mamãs”, sem pudor. Elogia-se a atitude. Não é todos os dias que se encontram pessoas com a humildade suficiente para desnudar a sua ignorância.

Seria isto de enaltecer se fosse conforme à realidade. Não é o caso. Apenas frescura misturada com uma histérica preocupação que os bebés sejam incomodados pela mais pequena perturbação de crescimento. Como se fosse um percurso linear, sem as vicissitudes de acontecimentos que nem os mais preocupados “papás e mamãs” conseguem controlar. São estes “papás e mamãs” que entram em pânico ao mais leve sinal de doença – das que fazem parte do catálogo das normais doenças infantis –, estes os progenitores que não hesitam em colocar os meninos numa redoma. Sem saberem que as redomas são o mais artificial meio de proporcionar crescimento aos seus filhos. Porque o mundo, lá fora, não tem nenhuma redoma. E porque os filhinhos do ignaro povo nascem e crescem sem conhecerem o mundo de preocupações mil dos “papás e mamãs” requentados, e no entanto nascem e crescem e têm as mesmas doenças infantis e chegam a adultos viçosos como raramente os que vêm da redoma conseguem ser. Poderão ser mais boçais, menos cultos, sem poderem singrar na burguesia ascensional, por falta de oportunidades que os “papás e mamãs” doutores e engenheiros souberam proporcionar aos seus rebentos. Pelo menos não tiveram que aturar uma infância com dois exemplares super-protectores que mal os deixaram respirar.

Na reunião estávamos um punhado de “papás e mamãs”. Fiz o papel de ranhoso: participei passivamente, sem intervenções. Limitei-me a escutar a troca de cromos dos “papás e mamãs” – e tive a sorte que o “grande Benfica”, o maior clube do mundo, estava jogar com o pequeno Manchester United, ou teríamos uma afluência superior de “papás e mamãs”. Ouvi e registei mentalmente as notas do meu descontentamento. E, perante a desidentificação com o clima reinante, lancei a pergunta aos meus botões: estar-me-ei a demitir da condição de pai desvelado?

A consciência deixa-me dormir sossegado. Ser pai é uma experiência única. São palavras batidas, palavras gastas por tantos outros pais, mas as palavras que melhor corporizam o sentimento de paternidade. E tenho a noção que exagerar na condição de pai, elevar os bebés ao altar dos deuses que o não são, é um exagero que merece o tratamento de todos os exageros. Sem que isto signifique desvalorizar a condição de pai, ou depreciar a filha tão amada.

Parece-me que futuros brainstormings de puericultura terão que registar a minha ausência. Porque gosto de frequentar locais onde aprenda algo com as pessoas que lá vão – em vez de desaprender. E porque gosto de ser tratado pelo nome, em vez de ouvir a educadora chamar-me, a toda a hora, “papá”.

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