22.9.05

Faça você mesmo a sua justiça (ecos da senhora de Felgueiras)

É a macacada total. O forrobodó abrasileirado. Um país de faz-de-conta. Quem tem a sorte de ser privilegiado pelas benesses do poder acantona-se em regalias que estão vedadas ao cidadão comum. Este é o sítio onde uma pessoa bate asas para o outro lado do Atlântico para fugir à ordem de prisão preventiva conhecida antes de ser divulgada (por artes de conhecimentos partidários dentro de um tribunal).

A senhora que desafiou a justiça chegou à terra mãe para se entregar. Após uma curta audiência no tribunal, saiu para aguardar julgamento em liberdade. Acobertando-se na covardia de uma absurda disposição legal que dá guarida aos candidatos a eleições – diz-se, para não frustrar a liberdade de escolha, os candidatos não podem dar com os costados na prisão num período que antecede as eleições. O patético advogado apareceu perante as câmaras, assegurando a pés juntos que ela não ia requerer o estatuto de imunidade. Esqueceu-se de dizer que nem precisava de o fazer, ele aplica-se automaticamente. O juiz concordou com a opinião de um afamado constitucionalista da praça, que sentenciou acerca da aplicação imediata desse estatuto. Ainda que minutos depois tenha escutado outro, mais jovem, constitucionalista a opinar o contrário…

A populaça que na terrinha apoia a fugitiva extasiou-se com o “acto de coragem”. Fazer as malas, abandonar o país tropical, logo agora que na terra mãe o clima se descompõe com o anúncio dos primeiros ares outonais. É um sacrifício deixar as terras de Vera Cruz, agora que no trópico oposto chega a época estival. Realmente, grande o sacrifício imposto à senhora. Mas de acto de coragem não se pode falar. Bem aconselhada pelo advogado com ar de espertalhão, a senhora sabia que ao pôr os pezinhos em terra pátria a espera da polícia judiciária seria um acto de cortesia. Quando alguém bate num paquiderme inanimado, não haja dúvidas que se trata de um acto de coragem inigualável…

Neste país risível, já nada me deixa boquiaberto. Aliás, só fico surpreendido quando parece que ameaçamos entrar nos eixos da normalidade. Então alguém virá descompor as coisas, reinserir a terrinha nos padrões da mais abjecta anormalidade. O regresso triunfal da senhora fugida da justiça é um acto encenado, um exercício ao jeito dos chicos-espertos nacionais que por aí abundam. A senhora despediu-se do país do terceiro mundo que a acolheu num sucedâneo de exílio dourado, voltando à terra que a aclamou através do voto, antes como agora com os tiques de terceiro-mundismo que esmerou no tirocínio brasileiro.

A senhora protestou a sua inocência mais que uma vez. Ainda em terras lusas, decorria a investigação. Já de papo ao leu, pele bronzeada nas praias de Copacabana, em orquestradas entrevistas a canais televisivos. Repetiu: era indigno ir para a companhia dos presos de delito comum, fosse feita a vontade do tribunal de Guimarães. Soube-se, então, que há cidadãos de primeira com direito a regalias exclusivas. Só para os privilegiados da política. Através desta senhora que destilou impertinência a rodos, ficámos a saber que os eleitos devem ter um tratamento de excepção pelo Estado de direito. Nem que isso signifique abrir um rombo de grandes dimensões no Estado de direito – apenas um simulacro de Estado de direito, um Estado de direito posto entre aspas.

A senhora fez as malas Chanel, envergou a pirosa fatiota cor-de-rosa (reminiscências partidárias, ainda que as comadres estejam de candeias às avessas), e pousou na santa terrinha que tinha tantas saudades da figura sebastiânica. Saiu, sorridente e triunfante, do tribunal. Com a pesporrência de quem se afirma “disposta a colaborar com a justiça no apuramento da verdade”. Só se isto não fosse uma terra faz-de-conta é que aquela frase faria corar os mais ingénuos: apetece perguntar, porque não quis a senhora colaborar com a justiça quando devia ter respeitado uma ordem do tribunal? (Ainda que fosse tão penosa, pela visita temporária aos calabouços.)

Cidadãos deste país: saibam que podem fazer a justiça que se aplica ao vosso caso. Mesmo que estejam inocentes – e quem não deve não teme – encetem uma fuga quixotesca para outras paragens se não se quiserem sujeitar à “vergonha” da prisão preventiva. Depois deixem passar o tempo. Pavoneiem-se no turístico exílio. Esperem por umas eleições e peçam a um grupo de amigos para formar uma lista que concorra às eleições. Que não se esqueçam de pôr o vosso nome no rol dos eleitos – de preferência, encabeçando a lista. Regressem então, aproveitando a imunidade que a absurda lei vos concede.

Tudo acaba bem. Menos para os moralistas de serviço que não se cansam de defender a “autoridade do Estado”, as delícias do Estado de direito. Para esses, o travo amargo de alguém que se ri na cara de justiça, na mais completa desautorização que a justiça pode sofrer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Mas, como pior ainda é possível: ela vai ganhar as eleições. O Avelino, o Valentim e o Isaltino também.
O que confirma a plena e saudável forma da nossa democracia. Em Portugal os políticos encarnam a mais fiel representação dos eleitores.