8.9.05

Trabalhar de mais afecta a saúde

Adoro a ciência e os cientistas. Pelas descobertas proporcionadas por horas a fio de intensa investigação. É um trabalho árduo. Escolher o alvo, formular as premissas, testar as hipóteses, interpretar os resultados e chegar a conclusões. Que surpreendem, a espaços. Há tempos li algures que um grupo de investigadores chegou à admirável (e conveniente, do ponto de vista marialva) conclusão que olhar para os seios das mulheres diminui a probabilidade de ataques cardíacos. Já temos desculpa para aquelas situações em que o olhar obedece ao instinto irreprimível de descair uns centímetros abaixo da cara de uma mulher avantajada que se cruza no caminho. As nossas caras metades ficarão sossegadas sabendo que o exercício lhes traz a recompensa de tão cedo não enviuvarem.

Agora soube-se que o excesso de trabalho traz dissabores para a saúde dos workoholics compulsivos. Diz o estudo que as pessoas que trabalham horas a fio, por dias consecutivos, têm uma probabilidade maior (63%) de sofrerem doenças incapacitantes antes de chegarem aos sessenta anos. É um panorama alarmante, agora que parecemos viver numa absurda dependência do trabalho. Para muitos, o trabalho é o preenchimento máximo das aspirações pessoais. Para alguns, pelas realizações materiais que o suor do trabalho proporciona; para outros, pela realização pessoal que ilustra uma carreira de sucesso; ainda para outros, expressão de um mundo que envereda pelas perversidades da competição. Já não faz sentido dizer que trabalhamos para viver. Vivemos para o trabalho.

Ao sermos dominados pelas tarefas profissionais, passamos ao lado das fortunas imateriais que, por o serem, são desvalorizadas. Hobbies que escasseiam, tempo livre consumido com o trabalho que não pudemos resolver no horário de expediente. A família sacrificada, filhos que a certa altura vêm nos seus pais completos estranhos, pais que não prestam a atenção que os filhos merecem. Até as relações pessoais se ressentem: muito do diálogo vem no fio dos problemas do trabalho, extinguindo uma relação genuína entre as pessoas que se amam. O trabalho é um intruso da vida pessoal. Sai do escritório e invade os lares. Entra nos poros, e tudo o que transpiramos é trabalho.

Os resultados do estudo podem ter consequências paradoxais para aqueles povos que não são atreitos às virtudes do esforço. Não há contradição com o diagnóstico anterior. É nas sociedades mais avançadas, as que se dizem mais desenvolvidas devido à afluência material, que a doença do trabalho mais se sente. É um problema de excesso. Em contrapartida, outros países pecam por defeito, atormentados por problemas de produtividade. Convencionou-se que esses países trabalham de menos para as suas necessidades. A diferença alonga a distância que os separa dos mais avançados. O problema da produtividade do trabalho não é apenas o da pouca apetência para o esforço: é, sobretudo, o de se trabalhar mal, a inaptidão, a incúria, o desmazelo. É um quadro doloroso: pouco se trabalha, e quando se trabalha é muita a asneira. Com um preço elevado a pagar, o preço de cometer erros que levam mais tempo para corrigir. Mais vale estar quieto do que fazer asneira.

Este é um aspecto curioso do trabalho. Aqui, como em tantas coisas na vida, não é a quantidade que conta. É a qualidade do que se faz. Mal vão certos viciados no trabalho quando ostentam, com orgulho, as maratonas que empreendem nos locais de trabalho. Exibem as horas a fio como medalhas de bom comportamento, exemplos de trabalhadores incansáveis sempre dispostos a darem o seu contributo para a produtividade nacional. Erro de raciocínio: outros que trabalhem metade das horas podem ser mais produtivos. Basta uma agenda organizada, não haver dispersão de tarefas que prejudicam a qualidade do que se faz. E não é preciso gabar-se com as horas tardias a que se sai do escritório: se metade do dia for passado a fazer de conta que se faz qualquer coisa, essa medalha de fiel dedicação à empresa é fogo-fátuo.

Há uma lição a reter neste estudo: jornadas de trabalho prolongadas e cansativas são uma factura para a saúde. O muito que se trabalha hoje (ou se apregoa trabalhar…) terá o preço de encurtar a vida activa dos viciados no trabalho compulsivo. São vidas que se antecipam, qualidade de vida cerceada pela fobia de viver a uma velocidade vertiginosa, que se contagia da pressa do trabalho para a vida pessoal. E como a vida se deve prolongar por mais tempo possível (outra vez, angústias de um agnóstico), viver na dependência cega das exigências do trabalho é meio caminho andado para morrer cedo, ou para viver longo tempo uma vida vegetativa.

É nestas alturas que me aproximo do visionário filósofo Agostinho da Silva, que via no trabalho uma coisa indigna da espécie humana. Não caio nessa visão excessiva. Apenas a vejo como um aviso para os workoholics deste tempo, que padecem de vistas curtas e se consomem na voracidade do instante que acabou de passar.

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