16.9.05

Subjugação feminina

No carro está sintonizada uma estação de rádio que só passa música. Não se escuta a voz de locutores que anunciam os autores das músicas que acabaram de passar. Muitas vezes há uma música que cativa a minha atenção, mas fico na escuridão, sem saber quem é o intérprete. O que vale é que recentemente foi criado um serviço por telemóvel que permite sair das trevas – o “qualé”. Faz-se uma chamada telefónica, que transmite o som da música durante vinte segundos e, de seguida, recebemos no telemóvel uma mensagem com o enigma decifrado.

Ultimamente uma música despertou a minha atenção. Não por ser um tema que tenha caído no goto, mas pela perturbante mensagem que se solta da voz enigmática da vocalista. Por entre os acordes da música suave, ela vai repetidamente sussurrando ao ouvido de quem a escuta:

If you want me for your girl, all you have to do is see that you're not the boy for me.”

Não me transtorna o relativismo que domina a vida contemporânea. Novas formas de vida, novas vivências, as ditas “relações abertas”, um cardápio extenso que faz com que hoje seja difícil distinguir normalidade da anormalidade. Nem me interessa fazê-lo, a partir do momento em que a escorregadela para aquilo que os virtuosos do objectivismo vituperam como anormalidade resultar de um acto consentido das pessoas envolvidas.

Regresso à frase repetida até à exaustão pela vocalista. A imagem de um diálogo coarctado, uma frase retirada desse diálogo imaginário entre ela e um apaixonado que lhe declara intenções. Altiva, avisa que só há uma hipótese de aceitar o namoro proposto: é ele reconhecer que não é homem para ela, que não está à altura da grandeza da donzela. A aceitação implica a submissão do apaixonado. Se quer um sim da sua pretendida, terá que lhe dizer que ela é grande demais para a sua pequenez. Num acto de humildade, ele ajoelha-se e presta-lhe a vassalagem que o seu pretenso amor desbrava. Sem reparar que o acto de humildade se confunde com uma exibição humilhante.

Ao escutar repetidamente a frase naquela música, e ao reter a imagem de subjugação proposta pela emproada rapariga, dou comigo a pensar como podem as relações ser marcadas pelo desequilíbrio. À nascença, condenadas à precariedade. São estímulos enviesados, pois o relacionamento é feito de estatutos desiguais. A balança pende para um dos lados, expondo as fraquezas do outro parceiro. Quando ela impõe como condição de entrega que ele admita que não a merece, coloca-o num patamar de inferioridade, no limiar da humilhação. Aos que se prestam ao acinte, uma sublime confusão: acreditarem que o amor tudo recompensa. Mesmo a diminuição pessoal que passa por um acto de suprema humilhação, como o retratado na frase que não cessa de se ouvir enquanto a melodia percorre o seu caminho.

Do lado dela, também uma peça intrigante se desprende do quadro: impor a subjugação do parceiro que lhe quer arrebatar os favores do coração. Esta condição é estranha: supõe que ela se entrega nos braços de quem está disposto a declarar que não a merece. Ora se ela é merecedora de pretendente maior, porque aceita a ternura de alguém que está aquém da sua grandeza? Faz-me lembrar aqueles que pensam: tudo o que vem à rede é peixe. Depois arrependem-se, quando regressam da embriaguez de sentimentos e se querem livrar da companhia de ocasião. A “entrega” (conceito que supõe um desprendimento de si que ultrapassa o limiar do aceitável, nem se compagina com o que se convencionou chamar “amor”) desvenda o apoucamento de si mesmo, a pretensão da osmose que supõe a perda de identidade, a subjugação à vontade do outro(a), uma forma amiba de ser. Um maniqueísmo do amor, na incompreensão dos que julgam que amor é entrega absoluta e incondicional.

Sinal dos tempos: nesta modernidade vencedora são as mulheres, numa vingança sobre a história, que subjugam os fracos homens que se põem a jeito. Uns e outros nada aprenderam com os despojos do passado.

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