Passava por aquela padaria todas as madrugadas. Ainda fechada ao público. Lá dentro, atarefados padeiros de caras tingidas de farinha produziam o pão que, horas mais tarde, desfilava nos pequenos-almoços de muita gente. À porta da padaria, do lado de dentro do gradeamento, um enorme boneco de porcelana. Um gigante cozinheiro, ostentando o seu garboso barrete branco. Parece que estava de guarda à padaria, afugentando temerários larápios que ousassem entrar nas instalações para levar o que não é seu.
Por vezes ele passava pelo local durante o dia. A luz do sol libertava o boneco cozinheiro para o exterior. Estava de guarda ao estabelecimento, do lado do passeio, cruzando-se, estático, com os milhares de passeantes que a toda a hora caminhavam pelo local. Não posava no anonimato para os transeuntes, que não evitavam desviar o olhar para o mamarracho ali especado. Havia quem gostasse, havia quem se entediasse com o boneco, nele visse uma exibição de fealdade. As pessoas que ali passavam todos os dias já nem sequer davam conta do cozinheiro que parecia convidá-las a toda a hora para gastar uns cobres na padaria.
Mas durante a madrugada o boneco dormitava em pé, em zelosa vigilância ao estabelecimento que lhe dera vida. Desafiava, com a sua opulência de mau gosto, a paciência de quem nele reparava. Em vez de se habituar com a presença da figura e de lhe fazer uma vénia de indiferença, a sucessiva passagem pelo local espicaçou-lhe a cobiça. Irritou-se, por se irritar com a porcelânica pose do gourmet. Por vezes quis ser um vulgar cleptomaníaco, atirar um tijolo para a padaria, estilhaçando os vidros e furtando, num ápice, a figura do vigilante impassível.
Era uma súbita pulsão cleptomaníaca. Sem laivos de doença, como têm os cleptomaníacos. Apenas uma embirração sem sentido, que aguçava mais ainda a irritação que sentia. Perguntava-se: como me deixo invadir pela irritação ao ser assaltado por uma insignificância? Porque dar mais valor a uma peça decorativa sem vida e perco a beleza de uma dia que está para nascer, deitando para trás das costas a retemperadora aurora que tinge o céu com uma mistura de cores que são a musa inspiradora para retirar o espírito da indolência? Se calhar nem era irritação. Porventura nem era um assomo de cleptomaníaco comportamento o que sentia. Levado pelo instinto de roubar o boneco cozinheiro, apenas pela estética pulsão de o achar senhor dos piores traços da piroseira nacional.
Para cúmulo, estava o boneco de costas voltadas para a rua. Havia ali empregado novo, decerto, desabituado do ritual de sempre – o boneco com a sua cara direccionada para a avenida, esboçando um sorriso cabotino. Agora o boneco ousava estar de costas voltadas para a rua. Suprema falta de educação de um ser inanimado, sentença lavrada pelo seu punho: pelo desplante, merecia o degredo final, ser subtraído à chancela protectora da padaria que um dia despertou para o duvidoso gosto de ficar conhecida pelo boneco achado algures entre a tralha rústica de uma fábrica de porcelanas.
Vem o sossego de um banho que leva as impurezas. Na água espumosa que se esvai pelo ralo da banheira vão os vestígios da irritação que culmina a madrugada. É então que se dá conta que na estética se percorrem caminhos muito diferentes. A sublime conclusão que na estética há muita liberdade individual em jogo. Que não deve ser manietada por julgamentos que são a subjectividade no seu estado mais puro. Há um adágio que ensina: “gostos não se discutem”. Para além do lugar-comum, bem por cima da superioridade estética de que se achava possuído, admitia que os olhos vêm de forma diferente a mesma coisa.
Uma ode à diversidade: que seria dos seus gostos se houvesse uma unanimidade em redor deles? Uma resposta simples: um desvio necessário desses gostos. Seria, então, cleptomaníaco dos seus padrões estéticos, na fuga imperiosa da boçalidade que se apoderaria dele se quisesse ficar abrigado em tais padrões. Ainda que corresse o risco de perfurar a densa epiderme da coerência pessoal.
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