Mudança de casa. Por entre o frenesim dos caixotes, dos papéis que estavam guardados sem necessidade, aquela coisa que julgava perdida e foi reencontrada, o cansaço de trajectos sem fim entre a casa que se deixa e a casa prestes a inaugurar, um sentimento de desapossamento quando bato a porta pela última vez. Não foi muito tempo – quatro anos são uma vírgula na vida de uma pessoa. Ou poderá ser muito mais. Se a intensidade desses anos faça deles um tempo espesso, preenchido de um significado que muitas vezes a vacuidade de anos a fio não consegue trazer.
E mesmo assim não consigo encontrar o fio à meada à nostalgia devida. Quando vou a acertar as contas com o tempo passado na casa que deixo para trás, recuso-me a estender o tapete a uma nostalgia que recorde o que de muito bom ficou naquelas paredes. A recusa não é uma porta fechada ao passado, como se fosse mister de esquecer esses momentos. Nem sequer há razão para um bloqueio da memória.
Dou conta que a idade que vai passando traz um esfriamento da alma. Direi melhor: um distanciamento das coisas, mesmo das mais belas, como se houvesse a necessidade de olhar em frente, apenas em frente. Não renego o tempo ido – nem o que traz recordações que se emolduram pela felicidade semeada, nem tão pouco as que ficam no álbum das coisas candidatas ao esquecimento. Um distanciamento frio, mas racional, ponderado. Ainda estou para descobrir se é sintoma bom ou mau. Às vezes receio que o desapossamento das coisas vividas no tempo que ficou para trás sinalize uma gélida existência, dominada pela racionalidade que se recusa a vivificar o que está emoldurado no tempo inamovível. A racionalidade que conduz os sentidos, apelo que mostra o porvir como rota a percorrer.
Ainda assim, é um sentimento estranho. Para quem, anos antes, gastava o tempo com as recordações desenterradas do passado. A glória da nostalgia teve o seu tempo próprio. Desconfio que era o desvelo da imaturidade – e sei lá se com a mistificação presente da maturidade que venho reclamar não calcorreio outra imaturidade que passa sem dar conta. Ou desconfio que mergulhava num pessimismo denso que trazia o pavor do futuro, percorrendo as veredas do tempo ido como tábua de salvação de um amanhã desconhecido. Que interessa sondar o significado da prisão nostálgica em que vivia, se agora esses são tempos de uma lembrança ausente?
Nas contradições que fervilham em cada um de nós, há uma que me consome. Se outrora aplainava o terreno da nostalgia, num acosso permanente pela vida vivida, estranhamente fugia da contemplação das imagens captadas em fotografias. Alguém contemplativo do seu passado, mas com um álbum de retratos que era um tímido punhado de fotografias. Uma nostalgia cultivada apenas pelas imagens guardadas na memória, que desfilavam numa tela projectada na exclusividade da memória. Agora, desprendido dos ventos soprados de outrora, maior apetência para guardar imagens de momentos com significado, como de momentos banais, registados na memória do cartão de uma máquina fotográfica.
As voltas trocadas, as sinuosas curvas que a vida tem que dobrar, trazem este encanto incompreensível: um desencontro entre a nostalgia que então não era cultora do registo de imagens, e a recusa da nostalgia de agora que se reencontra com a pulsão dos álbuns de recordações, imortalizando os instantes na forma de imagens que, quem sabe, voltarão jamais a serem revistas.
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