Ainda a rotina, e a confusão entre rotina e conservadorismo. Releio o texto de ontem. Apercebo-me que cavei o meu próprio cadafalso. Fujo do entediante bafio dos conservadores crónicos, dos que se recusam a ver a mudança como roteiro necessário para virar a página do que anda mal e nos rodeia. Porém, caí numa confusão: englobar na mesma categoria conservadores e pessoas dadas a uma sequência de hábitos que se repetem dia após dia. O que se chama rotina – e que tantas vezes se presta a um julgamento negativo.
Ao reler o texto de ontem, pus-me a olhar para dentro de mim. Afinal sou alguém possuído pelo terrível estigma da rotina. Se saio da rotina que preenche o quotidiano, é como se retirassem parte de mim, a estranheza de seguir um percurso não habitual, com a desconfiança dos passos que se dão por veredas dantes não calcorreadas.
Dou como exemplo o ritual do jogging matinal. Acordar sempre à mesma hora – dez minutos mais tarde e descompensam-se hábitos adquiridos. Pequeno-almoço, casa-de-banho aproveitando para ler os e-mails que caíram durante a noite (virtudes do wireless), saída de casa na companhia da cadela. Curto trajecto até ao Parque da Cidade. Os mesmos exercícios de aquecimento antes de dar corda às pernas para os quase sete quilómetros de corrida compassada, seguindo sempre o mesmo percurso. Ao fim de vinte e cinco minutos de ofegante esforço, recompõe-se o corpo com alongamentos. Antes disso, uma vista de olhos ao relógio, confirmando o tempo que gastei – o desafio do próprio corpo, uma competição comigo mesmo, tentando ir mais longe. Quase a finalizar, cem abdominais para tentar abater o pneumático que teima em adornar a barriga. E um sprint até ao carro, no esforço final. De regresso a casa, uma paragem no café de sempre para tomar o café matinal, que ajuda a retemperar as forças, lenitivo para o dia que se espraia pela frente.
Não há dúvida, de rotina se trata. Quase compulsiva. Terei razões para me preocupar com a rotineira prática com que começo o dia? Ao reler o texto de ontem, a resposta é um certeiro sim. Diferente é a conclusão ao medir o pulso ao que sinto se me faltam os passos repetidos em cada manhã dos dias de semana. Se acaso uma noite mal dormida me faz acordar para além da hora gizada; ou se a rara preguiça vence a cadência do exercício e falho a ida ao parque, é como se o dia começasse imperfeito, turvo. Tardo em recompor-me da ausência dos primeiros passos da rotina instalada. O dia começa mal, e tarde se encaminha para uma jornada normal.
Dou comigo e reflectir na dependência dos hábitos mentalmente agendados. A esta dependência a que se convencionou chamar rotina. Como dizia antes, parece que leso o bem-estar se as circunstâncias obrigam a escapar aos passos rotineiros. Mais do que me afastar dessa rotina. Contudo a rotina, quando continuada por tempo sem fim, pode trazer o cansaço dos gestos que se passam a repetir maquinalmente. O fiel da balança, a sensação de cansaço, o mau estar dos hábitos instalados. Aí a rotina passa a maleita. Carece de prescrição para a mudança.
Fazer coincidir rotina com conservadorismo é um exercício redutor. Se bem me conheço – e há sempre lugar à surpresa… – conservador é coisa que não sou. Dado a rotinas, confesso que sim. Não pela indolência da rotina, pela pasmaceira que espelha um certo adormecimento intelectual. Antes, rotina como esteio da organização interior, uma tentativa de alinhar uma agenda pessoal de tarefas que são, assim o penso, exigências para o bem-estar pessoal.
Se calhar vivo na ilusão de que esses gestos que se repetem dia após dia são a sequência necessária que alimenta o bem-estar. Se calhar há coisas desconhecidas que trazem outras compensações nunca tocadas. O desconhecido, ponte por atravessar – que a rotina desvia para outros caminhos. E mesmo esta dúvida metódica de mim mesmo, não será expoente da rotina que me domina?
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