9.7.08

Com a maré


O mar. Todas as flores se erguem do seu regaço. É no imenso oceano diante dos olhos que avistas novo vigor. Um mágico mar. Ora manso, imenso chão tranquilo onde nem suave brisa pousa. Ora o furioso mar, as ondas encapeladas, o mar revolto que se debate em si mesmo, esmagando-se nas rochas generosas à erosão demorada. Às vezes apenas o que parece um distante rumorejo, as temerosas ondas segredando mistérios que o mar encerra. De outras vezes, o estampido das ondas alterosas, um medonho troar vomitado das entranhas do mar, a imparável massa de água com a sua fúria destruidora.

Mas é da sossegada maré que partes em demanda. Em hora imprópria, ou talvez não: sabes que é a essa hora que todo o areal está por tua conta, as pessoas na sua ausência pela hora a elas imprópria. Deixas para trás o areal seco que acolhe a fria manhã até os pés beijarem o areal molhado pela maré que se esconde. A maré fugidia, que dá a ideia de guardar o mar para longe, como se as águas se quisessem recolher num sossegado esconderijo depois da buliçosa preia-mar.

Os olhos perdem-se na vastidão do oceano. No horizonte, os vestígios da noite que se encerra no primeiro fulgor da alvorada. Os pés enterram-se na areia escorregadia, a areia que se dissolve nos tímidos solfejos da maré que se esvai. Mas há sempre uma maré. Por fugidias que sejam as águas, o sinal da baixa-mar que chegou no seu momento aprazado. À espera que da maré venham notícias, um arpejo na encantadora melodia das suaves ondas que se esfumam, rasas, no derradeiro esforço que se esgota na areia. À espera do que traga a maré. Fragmentos de um mar onde vogam os restos da navegação, ou os vestígios do que teve no oceano seu leito de morte.

A areia molhada entranha-se nos pés desnudados. Há pequenos grãos de areia, mas grãos maiores que a fina, dominante areia, que se embrulham nas reentrâncias dos dedos. A maré começa a anunciar as suas novas. Cascas dos moluscos sem vida, inteiras ou despedaçadas. Algum lixo indiferenciado, lamentável plástico que empresta poluição às águas. Pedaços de madeira, sinais de naufrágios? Ou apenas a perfumada maresia que se insinua, convocando demorada inspiração que tudo lava por dentro.

Os olhos fecham-se. O corpo levita na maré que vai em demanda do horizonte. Apetecia entregar um pedaço do destino à aleatória maré. Embalar na doce melodia das ondas, onde um retemperador sono trouxesse sonhos idílicos. Entregar o corpo nos caprichos da maré, ser parte na coreografia onde são bailarinos as correntes invisíveis e os ventos soprados para algures. Sem saber para onde, só a certeza que a maré haveria de semear um qualquer destino, demorasse ou não a encontrar porto de abrigo. A entrega à fantasiosa maré: ela a ditar o percurso doravante, o esteio dos passos na obediente dança no compasso das correntes e dos alísios.

Ou poderia só ficar ali, diante do mar. Imortalizar o tempo, por algum tempo apenas. À espera das falas trazidas pela maré. Tonificante conversa, o mar como interlocutor, as sucessivas marés deixando os perfumes diferentes – o espelho dos humores variáveis do oceano. Todo um tempo para retratar as marés. Haveria uma paleta de cores, de garridas cores, a pluralidade das marés e da miríade de fragmentos empurrados até ao areal onde tinham seu descanso temporário. Os seixos polidos pela fúria das ondas esbarrando nos pés amolecidos pelas ondas repetidas, cima a baixo ao ritmo das marés. Um bálsamo. Ou apenas um refúgio, o castelo necessário onde se resguardam as ameias onde tudo se transfigura numa beleza que não pertence ao mundo inteligível.

Todavia, há imponderáveis sem remissão: podes esperar, entre a algazarra da eternidade, que na alvorada o horizonte onde se esconde o interminável mar não anuncia o sol nascente. Nem mil óperas de fantasia contrariam os firmes passos das marés, de uma qualquer maré. A geografia e a localização no universo, os capatazes desse indeclinável pulsar.

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