4.7.08

Puericultura – da política Noddy


Não me incomoda pregar no deserto. Nem me sinto reconfortado quando fica provado que tinha razão fora do tempo. Meses passam para confirmar o diagnóstico feito lá atrás: este primeiro-ministro e o antecessor são cara e coroa da mesma moeda. A moeda que o actual inquilino do Palácio de Belém soube qualificar ainda não tinha mudado de residência para o dito palácio. Em defesa do meu argumento: se o anterior primeiro-ministro se auto-proclamou “menino guerreiro”, do actual fez-se constar, em luzidias parangonas, que é “menino de ouro”.

Soube-se no dia do lançamento da sua biografia, escrita por uma jornalista que, não percebo ainda, se terá encontrado na personagem motivo para fazer uma boa maquia com um eventual best-seller ou se é uma das muitas jornalistas amestradas que povoam o panorama da comunicação social e foi contratada para fazer o frete em véspera de eleições. Bem ao jeito deste desastrado governo inçado de amadores, fez-se saber que de uma “biografia não oficial” se trata. E, contudo, a jornalista que andou a vasculhar no passado da personagem – exemplar, of course –, culminou a investigação com duas longas entrevistas a sua excelência. Que ingredientes estão em falta para ser uma biografia oficial? Nada que surpreenda: estes amadores já nos habituaram a dar uma no cravo e outra na ferradura, a política da indecisão por temor de se inclinarem para um qualquer lado. Como aqueles irritantes bonecos sempre em pé, teimosamente sempre em pé.

Na “biografia não oficial”, o homem que manda nesta terra é carinhosamente apresentado como o “menino de ouro” (do PS). Percebo agora porque sua excelência não terá dado autorização que o opúsculo apareça nos escaparates como sua biografia oficial. Tratá-lo como menino de ouro do PS é uma injustiça. Ele é o menino de ouro de Portugal inteiro. Como foi possível escapar este detalhe à estalinista máquina de propaganda que o acompanha até na hora do sono? Eu acrescento: até seria mais afável o cognome “menino d’oiro”. É mais reluzente, mais condizente com a sua aura salvífica. É, ao mesmo tempo, a ilustração devida de alguém que já conquistou um lugar eterno no coração de toda a gente – sim, de toda a gente, que com a sua aura não há lugar a dissidência opinativa. Os teimosos que não se revêem neste endeusamento vomitam uma deplorável ingratidão. Deviam ser exilados e impedidos de votar.

O outro, que foi seu antecessor e que, no fundo, foi o abono de família da maioria absoluta que o actual alcançou, esse era o “menino guerreiro”. Um registo “Action Man”, belicoso, doidivanas, o desbragamento mental e verbal. Como todos os guerreiros, com sangue na guelra. Elucidativo de quem pensa com os pés. Como é vulgar acontecer com os incautos guerreiros que se oferecem, estúpidos, no altar de uma qualquer guerra, carne para canhão. O “menino guerreiro” foi a carne para canhão devorada pelo aparelho do PS nas eleições que haveriam de consagrar a predestinada figura que traça o rumo desta nau que teima em sulcar águas tormentosas.

A um menino sucedeu outro menino. Este é de ouro. Precioso, portanto. Mas quem resiste à imagem ternurenta que vem de braço dado com um “menino de ouro”? Se o lamentável antecessor era (ou julgava-se) uma espécie de “Action Man”, este é mais o registo Noddy. O menino bom, aquele que tem o coração mais puro de todos os meninos. Penhor da boa moral, adejando sobre todos os demais num limbo entre o comum dos mortais e um endeusamento merecido só pelos predestinados. O menino de ouro é um afectuoso atributo daqueles meninos bons, muito queridinhos, que as avozinhas adoram. O menino exemplar. Se isto não é culto de personalidade, então é o quê? Dirão os ingénuos: se calhar o “menino de ouro” escapou à máquina de propaganda que lhe faz a corte. Acredite quem quiser. Eu desconfio dos meninos exemplares e do cravo e ferradura que deixa passar a imagem e depois não a assume. No episódio lamechas, uma estética que se confirma: está explicada a estética dos projectos arquitectónicos bizarros que o “engenheiro” andou a assinar lá para a Beira Alta.

Sucede que não deixamos de ser governados por um menino, o que talvez explique que a nau continue à deriva. Ele há casa governada por meninos? E, entretanto, dou conta das muitas vezes – das excessivas vezes – que o homem que manda nesta terra é motivo de texto com a minha assinatura. Por mais que tenha prometido que não repetia escritos sobre a personagem, é irresistível. Ao menos consigo não reproduzir o nome da personagem, para não acentuar esta fobia que me consome.

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