29.7.08

O que há de comum entre Radovan Karadzic e Pinto da Costa?


Há coincidências notáveis. Para aqueles que se entretêm com a cabalística das coincidências, há simbolismos marcantes em cada coincidência notável. Eis a que me traz ao texto de hoje: para Karadzic, como para Pinto da Costa, o mundo – o mundo que parecia não admitir rombos – entretece as suas ruínas. Admito que o título pode chocar algumas consciências, sobretudo as que se deixam cegar pela filiação clubista. Admito: há diferenças entre as personagens que proponho comparar numa linhagem que, todavia, não é menosprezável.


O primeiro vem acusado de graves crimes contra a humanidade, arrastando consigo a torpeza de ter ordenado massacres que condenaram a valas comuns milhares de muçulmanos bósnios. Agora que foi capturado, vai responder no tribunal de Haia pelo crime mais vergonhoso de todos: genocídio. Diria: na escala da criminalidade não é possível descer mais baixo. Tanto assim que os crimes julgados pelo tribunal de Haia – os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade – não prescrevem. Perseguem os criminosos enquanto forem vivos, não importa o esconderijo onde se refugiem ou a falsa identidade que assumam. O outro não é acusado destes crimes. Nada que se pareça com estes crimes. Sobre ele caem, em acusações concretas, as muitas suspeitas de jogos de corrupção, da teia de interesses que espalhou uma máquina bem oleada que facilitava o rol de vitórias conquistadas nos últimos anos. Há escutas telefónicas que puseram tudo a nu. Malabarismos de juristas amestrados tentam invalidar as escutas, como se o que foi escutado nunca tivesse acontecido, ou fosse irrelevante. Manobras processuais tentam ilibá-lo do tráfico de influências e da corrupção que uma pequena amostra de escutas telefónicas, e por acidente, trouxe à superfície.


Fixadas as diferenças, o que une Karadzic e Pinto da Costa? Revejo as imagens de Belgrado em lágrimas e revolta depois da captura de Karadzic. Uma erupção de nacionalismo sérvio, o vulcão de fervor nacionalista soltando palavras de protesto contra a traição das autoridades. Ao que consta, para uma larga fatia dos sérvios Karadzic foi e continua a ser um herói. A perplexidade sobe ao lugar mais alto. Não quero ser vítima da máquina de propaganda dessa pérfida coisa abstracta chamada "interesses ocidentais", mas afirmo à mesma: há relatos insuspeitos das atrocidades ordenadas por Karadzic. Pior, das atrocidades sordidamente planeadas. Foi o carrasco de milhares e milhares de inocentes que nasceram com o credo errado e estavam no lugar errado no momento errado. Mas o erro maior foi a fria sentença de morte colectiva assinada por Karadzic.


Quando um mundo (quase) inteiro condena estes actos de barbárie, na Sérvia há muita gente que continua a endeusar Karadzic. Não há lugar ao arrependimento, nem sequer à vergonha pelos actos vis sancionados por Karadzic. Em vez disso, a glorificação de um herói. Através da revolta das gentes que saíram à rua em Belgrado e noutras cidades sérvias, uma mensagem aterradora: se a história se voltasse a repetir haveria outros imbecis candidatos a tomar o lugar de carrascos no estertor das rivalidades étnicas. Mais chacinas com aprovação entusiasta. E criminosos de guerra entronizados no lugar de heróis. Por mais abertas que estejam as feridas das rivalidades étnicas, com todo um lastro histórico que obstrui a pacificação das gentes desavindas, sou incapaz de perceber como alguém pode caucionar a chacina colectiva e o humilhante enterro em valas comuns e coroar o feito com pinceladas de heroicidade. Ou há aqui uma cegueira motivada pelos ódios inter-étnicos, ou está tudo errado na percepção das coisas e dos valores.


Agora que um dos maiores carniceiros da guerra dos Balcãs foi preso, vertem-se lágrimas pelo seu destino e espuma-se a raiva pelo herói privado da liberdade. Os que perderam a vida debaixo da sua assinatura sofrem, já no túmulo, a pior das humilhações. Aqueles que festejam, em protesto, a heroicidade de Karadzic, sinalizam a mensagem: os que foram mortos e enterrados em valas comuns, foram muito bem mortos.


Com as distâncias já ressalvadas, há parecenças com Pinto da Costa. Anos de rumores e suspeitas transformados em acusações da justiça. Todo um mar de evidências espalhando-se. Não interessam aqui as manobras processuais e os malabarismos dos juristas para assegurar o impoluto ar da personagem. Só me interessa a reacção dos fiéis seguidores, que o continuam a ser – e ainda mais indefectíveis. Quem os ouve e lê aprende muito: o presidente daquele clube fez muito bem em distribuir prostitutas pelos quartos de hotel onde estavam hospedados árbitros seduzidos pelo aperitivo carnal. É que para triunfar nos campeonatos vale tudo e tudo vale. Curiosa semelhança: Karadzic preso e as gentes a louvarem-no como herói, porventura deus como nunca; Pinto da Costa a contas com a justiça e endeusado como nunca o fora.


A reprodução da nova ética que respira nos tempos que correm: na coreografia entre meios e fins, os meios sucumbem diante da ditadura dos fins. Nos condoídos adeptos de Karadzic, como nos irados apoiantes de Pinto da Costa.

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