11.7.08

O vulto e a aspirante a nota de rodapé


Topete. O termo regressou à ribalta quando há tempos Freitas do Amaral, então ministro dos negócios estrangeiros, o usou, indignado, perante uma qualquer tropelia da oposição. Talvez por hoje estar tão enraizada a democracia, que nivela toda a gente – sobretudo os que à partida se poderiam considerar em posição inferior ao pé dos grandiosos que quase atingem dimensão divina – há por aí muita audácia à solta. É saudável. A audácia e a democracia. Temos direito a espectáculos quase diários. A eles assistimos de uma confortável poltrona. Gratuitos espectáculos, ainda por cima. A provar que esta vida não é uma enfadonha via-sacra possuída pelo fantasma de omnipresentes crises, a audácia resulta amiúde em disparate que devolve a boa disposição.

Por estes dias anda uma polémica desatada no meio da cultura caseira. Por causa da opinião da demitida ministra da cultura, Isabel Pires de Lima: a senhora acha que a Cinemateca devia ser descentralizada, estender um braço até à capital do norte. O director da Cinemateca, Bénard da Costa, respondeu com aspereza nas páginas do Público. Luís Miguel Cintra, no mesmo jornal, escreveu artigo de opinião colocando-se ao lado de Bénard da Costa. Aproveitou para proferir palavras impiedosas para Isabel Pires de Lima. Haveria próximo episódio, decerto: a senhora respondeu em jeito de carta aberta a Luís Miguel Cintra. No dia seguinte, um dos acólitos da senhora enquanto mandou no ministério da cultura deu para o peditório, dando umas vergastadas em Luís Miguel Cintra.

Tenho acompanhado, muito entretido, a troca de argumentos entre estes personagens da cultura – enfim, uns mais do que outros, personagens e da cultura. Enternecedor, o jeito para a peixeirada de alguns destes personagens. E há peixeirada e peixeirada. Há a peixeirada de mercado, o desbragamento verbal das varinas acompanhado pela estridência que fere a audição ao longe. E há a peixeirada que não o parece, muito subtil, encapotada pela aura intelectual de quem nela se envolve. Pérfida peixeirada, que se insinua num cinismo mal disfarçado. Um arrazoado estilizado, recuperando os exercícios palavrosos e a queiroziana ironia cáustica.

A carta aberta de Isabel Pires de Lima a Luís Miguel Cintra é o retrato de tudo isto e mais ainda. É de uma falsa humildade: a senhora ex-ministra inclina-se várias vezes diante da grandeza de Cintra, confessando a sua pequenez e ignorância perante o vulto que é seu oponente na polémica. Logo se nota a falaciosa humildade. Até porque a senhora se apressa a puxar os galões de professora universitária – melhor, catedrática; que não há mais alto na escala. E assim dá uma no cravo e outra na ferradura: tão depressa solta as cínicas palavras onde se curva perante o vulto da cultura, como descai para a soberba intelectual ao resgatar a suposta superioridade que o estatuto de catedrática lhe confere.

Estou habituado à pesporrência. À ausente humildade intelectual de académicos que, por o serem, se acham a nata das elites. E estou cansado de ver académicos puxarem da sua condição de académicos como argumento definitivo de autoridade. Ou como ponto de partida para discussões, como quem põe no devido lugar os oponentes que não são académicos; ou, em desespero de causa, quando numa discussão se esgota a razão e lá se solta o derradeiro argumento – o argumento de autoridade, a aura intocável de quem asperge tanta sabedoria por ser professor universitário.

Algumas vezes, a auto-contemplação de tão elevada erudição é um ardil que se volta contra quem a ostenta (e é de ostentação que se trata). Descamba para a cegueira. E não percebem o discernimento ausente. Ao ler a muito queiroziana certa aberta de Isabel Pires de Lima, foi o que me ocorreu. Isso e a palavra que inicia este texto: topete. Alguém que, por ter chegado ao topo da carreira académica, disso faz credencial para rivalizar em estatuto com alguém que ocupa um lugar consagrado na cultura doméstica. Lá por ter estado dois anos e pouco à frente do ministério da cultura – e o facto de ter sido convidada a interromper a sinecura a meio do mandato é sintomático de um certo erro de casting –, isso não é argumento de autoridade para discutir, de igual para igual, com um vulto da cultura. Há aqui uma confusão de estatutos: ser professor universitário, mesmo que ungido com a aura catedrática, não é argumento de autoridade senão na ciência respectiva.

O que vale é que, daqui a umas décadas, quando alguém organizar uma enciclopédia da cultura nacional, Luís Miguel Cintra será credor de um página inteira. Isabel Pires de Lima terá direito, quando muito, a uma nota de rodapé com este teor: “ministra da cultura do XVII governo constitucional (12.03.05-30.01.08), destacou-se pelo penteado desgrenhado.

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