Apetece interrogar o travesseiro – os travesseiros – onde o senhor primeiro-ministro se deita. Interrogá-los acerca do sono que tem. Se é um sono sobressaltado, tomado por pesadelos de onde gritam dores de consciência. Ou se o sono é dos justos, sereno por não temer o acerto de contas com a consciência. Perguntar a esses travesseiros se o primeiro-ministro não chega até eles envergonhado depois do périplo de diplomacia económica que o fez reunir, em tão curto espaço de tempo, com os ditadores de Angola, Líbia, Venezuela e Guiné Equatorial. E indagar os travesseiros que guardam os vestígios da dormida consciência do timoneiro da nação se ele não confessou indigestão depois de loquazes elogios com que mimou, em doses variáveis, os ditadores.
Não sei se os travesseiros dirão que a diplomacia é o terreno onde germinam as sementes do realismo. Sementes que vão desabrochar em rendíveis negócios, nutrientes preciosos para, dizem-nos, o crescimento económico, o bem-estar pátrio, ou apenas para que alguns negócios privados esfreguem as mãos de contentamento. Oportunidades lacradas com o selo da infâmia. E crescimento pátrio com o pútrido odor das atrocidades aos direitos fundamentais e dos atropelos às liberdades. Não sei se os travesseiros dirão que o primeiro-ministro é um pragmático. Nessa modalidade subvertida que obriga as pessoas a torcerem a coluna vertebral e a estenderem a mão a facínoras da pior espécie. Ou a aparecerem os olhos dos outros (ingénuos, decerto, estes últimos) como espécimes destituídos de coluna vertebral. Porventura os expoentes do realismo dirão: "abre os olhos, ó ingénuo, que estes são tempos em que os meios sucumbem diante dos fins".
Teria que perguntar aos travesseiros: se não guardam as respostas para tudo isto nas fronhas onde repousou a brilhante cabeça do primeiro-ministro. Se nas fronhas não estão traços vivos da pior das incoerências – a de alguém que solfeja moralismo quando exala princípios e logo a seguir se esquece desses discursos quando amesenda com ditadores da pior espécie.
Gostava de poder escutar as confidências com os conselheiros que rodeiam o senhor primeiro-ministro: saber se havia uma palavra de arrependimento por ter convivido com gente daquela igualha. Se foi acometido por um arrependimento ditado pela profunda consciência, as dores tão fortes de quem se curva perante as exigências da realista diplomacia económica. A alguém alinhavado com imagem tão exemplar, só os interesses patrióticos da economia indígena são convencimento suficiente para estender a mão a gente pouco recomendável. Essa gente que lhe estende mãos manchadas com tanto sangue, eles que transpiram o fétido suor da desonra. Para logo depois atirar a maior das interrogações: e tudo isto não se contagia aos que conferenciam com ditadores deste jaez? Ou é apenas um espelho da calibrada consciência de quem aceita embelezar a imagem externa de gente condenada ao isolamento internacional?
Gostava que os travesseiros me dissessem se o senhor primeiro-ministro neles procurou habilitante confessionário. Que me revelassem se ao entrar no quatro do hotel sua excelência não fez mais nada sem antes ter lavado, e sob abundante água, as mãos que apertaram as mãos daqueles facínoras. Se deu conta do muito sangue que escorria das suas então infectas mãos. Se ainda tivesse direito a mais um par de questões, queria que os dilectos travesseiros me saciassem a curiosidade: os prolixos elogios aos déspotas eram sentidos, ou só palavras de ocasião nas exigências da cortesia protocolar, um salamaleque diplomático para elevar o ego dos déspotas? Ao incensar gente que não é companhia recomendável, quanto mais para ser ungida com um elogio que seja, o timoneiro pensou no que disse ou disse o que pensou? E gostava de findar o interrogatório aos travesseiros para saber se o senhor primeiro-ministro não confessara vergonha por andar com tão más companhias; até, se não chorava as dores de uma consciência agredida pelas exigências da diplomacia realista, a tábua rasa aos princípios eticamente impolutos de alguém que se pavoneia como insígnia da tão exemplar internacional socialista.
As companhias são a imagem de quem com elas aceita andar de braço dado. O povo, raras vezes sábio, merece que se abra uma excepção para recordar sugestivo adágio: "diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és".
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