23.7.08

A “esquerda” não é sectária. Nem intolerante

"Os sinais de crescimento eleitoral dos partidos à esquerda do PS e a provável perda da maioria absoluta pelo actual partido no poder requerem uma reflexão séria sobre "a esquerda" e os seus desafios. Se o proclamado "socialismo moderno" de Sócrates vier em breve a desvanecer-se no ar, uma mudança paradigmática na esquerda terá de ocorrer, se não quisermos hipotecar em definitivo o futuro da democracia." Elísio Estanque, in Público de 22 de Julho de 2008 (o destaque é de minha autoria).

Não consigo resistir a um ensaio sociológico sobre alguma sociologia política que está muito em moda. A sociologia engajada, onde a certa altura se confunde o papel do investigador universitário com o papel do actor empenhado em militâncias. Não estou a defender que o primeiro seja uma criatura asséptica, sem opiniões próprias, ou que no lugar de investigador tenha pudor de revelar preferências. Assim como assim, o primeiro não se desliga da cívica condição. Não se pode impor uma camisa-de-forças ao académico apenas porque o é. A condição de investigador e as exigências de rigor e imparcialidade não podem motivar a demissão do cidadão que há si.


No entanto, não compreendo como alguns misturam os dois papéis num só. A certa altura não sabemos quem opina: se o meritório académico, se o cidadão que puxa os galões à académica condição (como se ela fosse passaporte de autoridade intelectual…) e intervém em defesa de uma das causas em que milita.


A escola coimbrã sempre chamou a si, em muitos saberes, um papel liderante. Tanto que, não faz assim tantos anos, ouvi um catedrático local gabar-se que a Universidade de Coimbra não reconhecia diplomas passados por Oxford e Cambridge. O modismo coimbrão, que se serve numa paleta onde repousa narcisismo intelectual densificado ao longo de sucessivas gerações, é coisa inerte. Teima, estóico e imperturbável, ao avanço dos tempos. Mesmo que o modismo venha temperado com novas cambiantes, novas escolas que chamam a si a vanguarda do pensamento, que se auto-convencem que estão muito à frente na arte de fazer ciência.


A sociologia engajada é a nova aragem desta vetusta tradição. O autor do mote que encabeça o texto é um dos representantes dessa escola. E tem o inalienável direito à opinião. Tal como alguns leitores o direito a considerá-la disparatada, facciosa, inquietante. A frase do artigo de opinião de Elísio Estanque é exemplar do facciosismo e do perigo que uma certa esquerda representa. Compreendo que o sectarismo de Elísio Estanque o faça incluir apenas as "esquerdas" no escrito. Das direitas, outros hão-de curar, mais interessados no vegetativo estado em que elas se encontram por estes dias (dou de barato que o PSD se encaixa na "direita", diagnóstico de que discordo). Adivinho que o paraíso na versão imaginada por Elísio Estanque, seus gurus e acólitos, seja uma paisagem eleitoral em que a "direita" fosse varrida. De preferência para sempre.


Serão estas palavras uma adivinhação, apenas um registo especulativo? Talvez não. Retomo as palavras de Elísio Estanque: "(…) uma mudança paradigmática na esquerda terá de ocorrer, se não quisermos hipotecar em definitivo o futuro da democracia". O leitor aprende da cartilha: o futuro da democracia é sinónimo de "esquerda", dir-se-ia património genético das "esquerdas". Por exclusão de partes, "a direita" (ou as "direitas", pelo menos algumas delas) não defendem a democracia. Estão ausentes do futuro da democracia. Eu avançaria uma proposta: a Constituição já proíbe os partidos que professam a ideologia fascista; para o paraíso chegar à lusa terra, é só um passo mais: proibir todos os partidos que, de acordo com uma comissão de sábios onde Elísio Estanque e outros engajados sociólogos coimbrões teriam lugar cativo, levem com o vergonhoso rótulo de "direita".


Cada um fica entregue aos deslizes totalitários da sua lavra. Não sei se o relativismo em que a sociologia engajada se revê aceita a volatilidade da "democracia" (apesar de estar nos antípodas dela, coincidimos no relativismo). Haverá maneiras diferentes de interpretar "democracia"? Os comunistas usam a palavra a toda a hora, mesmo que se saiba que o passado de quem foi seu ícone não é abonatório do respeito pelas liberdades, da tolerância pela opinião diferente. Não abona em favor das suas credenciais democráticas. Talvez por isso se escondam no corajoso passado de resistência "anti-fascista" para puxarem lustro aos galões democráticos. Um expediente, apenas: não é essa heróica resistência que os transforma, por decreto, em democratas. Mas Elísio Estanque acha que os comunistas, principalmente os que procuram escapar da ortodoxia leninista que faz do PCP um museu vivo do comunismo de antanho, são mais democratas do que a gente que anda pelos partidos de "direita". O relativismo é a fiança de tudo e mais alguma coisa.


O que me inquieta é esta esquerda arvorar-se em campeã da tolerância. É só reler a frase de Elísio Estanque. E interrogar: para onde terá emigrado a tolerância de quem escreveu aquilo? O sectarismo impedirá de concordar com este juízo. Sobra-me o pregão definitivo: que viva o relativismo!

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