Agrestes momentos: quando o rosto é o derradeiro a ser reconhecido nas fotografias ou numa filmagem; e quando a voz própria é a última a ser distinguida entre um aglomerado de vozes todas elas mais familiares. Subitamente, a revelação de um desconhecido que trago em mim.
Não será surpresa maior. Os retratos, as imagens em movimento, as vozes em formatos mil são o corpo em movimento, o corpo saído de si mesmo. Como se vogasse no seu exterior e conseguisse ver-se a si mesmo, escutar a sua voz sem estar a falar. Um espelho fatal em que o ser se fita e se expõe, esquivo a si mesmo. A exterioridade de si, a emergência do eu desconhecido, o desconfortável desconhecido. Uma fotografia com muitos rostos e a reacção instantânea do único não imediatamente revelado ser o próprio rosto. Ou um registo áudio com um aglomerado de vozes, todas conhecidas menos a minha. Parece que conheço melhor os outros que a mim mesmo.
É a factura de viver preso na interioridade de um corpo. A voz, quando se solta, tolhe a audição de si mesma. Quando falamos não nos escutamos? O que não conseguimos discernir é a voz. Depois, se ouvimos em gravação a voz com pouca assiduidade, as inevitáveis interrogações: “aquela voz é a minha? É assim que a minha voz soa?” Por momentos, um pouco atónito, procurando sintonia com a voz escutada. A voz escutada é como se fosse um estupefaciente que atordoa, deixa um rasto de desorientação. Naquela altura as palavras escutadas não soam a nada, obediente a atenção à captura da tonalidade da voz.
Um inexplicável desânimo: parece que o rosto naquela fotografia não é um rosto conhecido. Que a voz pertence a um estranho. De repente, as imagens e sons que são meus revelam alguém que julgava ser outrem. A perplexa descoberta de um eu diferente revelado nas imagens e sons esparsos. Um jogo de espelhos. Na penumbra de um espelho, imagens e sons ascendam das profundezas e conferem uma claridade diferente, possuem-se numa revisitação da claridade. Ali, diante dos retratos, dos sons da voz que escuto, assombrado, há um instante de redescoberta. Um certo renascimento, ultrapassada a estranheza inicial: “afinal, é assim que sou”. Não assim que pareço.
Quando o tempo passa e o eu regressa à imagem de si, assenta a poeira da perplexidade. Esbatem-se os ecos da voz desconhecida, o rosto nas fotografias em ângulos só desfavoráveis, aquele rosto que parece o de outro qualquer. E se, tempo depois, regressam os retratos ou os sons da voz, retempera-se a desagradável surpresa da revisitação de alguém que se elabora no seu desconhecimento. Uma teia que se entrelaça nos dedos, todos os fragmentos de um estranho que se apodera da imagem julgada de si mesmo. Houvesse ali um espelho diferente, um espelho capaz de despir o estranho que toma conta da superfície.
Não sei se é explicação parcial para me esconder de álbuns de fotografias. Há, decerto, a recusa do revivalismo estéril – que só tem o condão de retirar tempo de ouro ao presente que se suspende no devaneio das memórias. Também há um refúgio no eu habitual, o eu que esbarra no eu revelado em imagens e sons que são o palco de um mundo diferente. Uma teia de espelhos sobrepostos. As muitas dimensões por onde escorrega o corpo. E nem sempre aquela que retrata a imagem fidedigna é reprodução da idealizada.
Uma e outra vez, sempre que o estranho em mim assim se revela, apetece apagar essas imagens, refazê-las como se houvesse um programa de maquilhagem das fotografias, ou um meio de recompor a voz escutada, tornada mais melodiosa. Ou apenas o desejo de permanecer no torpor do eu que se esconde na sua ilusão. Até que seja impossível distinguir o eu julgado do estranho que nele habita. Até que seja impossível dar resposta à interrogação: afinal o que sou é o que me julgo, ou o estranho revelado quando me projecto no exterior de mim mesmo e daí fito o que sou?
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