“A direita, meu caro amigo, faz essa figura em todos os países, mesmo os mais ricos. Basicamente, acha ela que, se os pobres são pobres, alguma coisa terão feito de errado.” João Pinto e Castro, no blogue Cinco Dias
Não tinha planeado prolongar o tema de ontem. Às vezes, imponderáveis obrigam a mudar a agulha. Um acontecimento inesperado, ou palavras lidas que cativam a atenção – e a perplexidade. Em vez de guardar as palavras que dão o mote ao texto de hoje e agendar o tema para depois, preferi aproveitá-las antes que arrefecessem. E fazer a ponte com o texto de ontem. Como se o texto de hoje fosse o segundo acto da minha tremenda admiração pelo universo onde flutuam as esquerdas. Disso e da minha incapacidade para dar o salto para esse lado da barricada. Porventura, das maiores frustrações pessoais.
As generalizações são um terreno movediço. Um pântano onde as ideias se afundam, desgastadas na ausente honestidade intelectual. Também é verdade que a retórica ensina truques que fixam um hiato entre o que é dito e o que se queria afirmar. O problema das generalizações fáceis é que nem toda a gente empurrada para a categoria generalizada corresponde ao protótipo que, para conveniência argumentativa, é inventado às três pancadas. Se João Pinto e Castro estivesse coberto de razão, toda a gente que não se revê numa iluminada esquerda diria, com convicção, que os pobres carregam o fardo da miséria por castigo. A assertividade da sentença é tal que este opróbrio que cobre a direita (como se “a direita” fosse coisa homogénea) é predicado universal: é a figura que, nas sábias palavras de Pinto e Castro, “a direita” faz em “todos os países”. Vício de raciocínio: se existe alguma solidariedade ideológica que atravessa fronteiras, essa é a da Internacional Socialista.
Se me esforçasse por pensar de acordo com os refrescantes quadros mentais desta “esquerda” – a de Pinto e Castro é diferente da de Elísio Estanque –, ou de como essa esquerda retrata a forma de pensar da “direita”, diria que a “direita” acredita que os pobres carregam o fardo da pobreza como pretexto para desfiar o rol de críticas ao assistencialismo típico do generoso Estado social. O exercício mental consiste em perceber o que esta esquerda, para seu auto-comprazimento, põe na cabeça da “direita”. É o retrato idealizado, e conveniente, da homogénea “direita” feito pelas cabecinhas iluminadas desta esquerda.
Continuando nas oportunas convenções que semeiam generalizações a eito: quem é de direita é conservador e católico. Sem lugar a excepções – nem os ateus que, não se orgulhando de serem de direita, fogem a sete pés de toda e qualquer esquerda. Talvez “aves raras” que perturbam a facilidade das generalizações, um grão na engrenagem das teorias fáceis que alimentam o auto-convencimento da razão que assiste, inevitável, às “esquerdas”. Retomo o fio à meada: como os da “direita” acreditam em deus, a condição de pobreza será castigo divino. Lá diz Pinto e Castro: que a direita está convencida que “se os pobres são pobres, alguma coisa terão feito de errado”. “Basicamente”, como enfatiza.
A imaginação delirante, febrilmente delirante, desagua nestas pérolas heurísticas. Que guru de “direita” terá defendido semelhante ideia? Do que tenho lido, nunca encontrei um ideólogo de “direita” a afirmar que os pobres são pobres por destino divino. Sei que por mais que leia, há ainda muito mais que fica por ler. Talvez Pinto e Castro prestasse um favor à honestidade intelectual se citasse algum ideólogo de “direita” que tenha escrito que os pobres estão remetidos a essa condição como castigo por “algo de errado que fizeram”.
É impressionante: as cambalhotas argumentativas e os truques de retórica que se empregam para se atingir uma finalidade. É óbvio que vivemos numa era dominada pelo triunfo dos meios sobre os fins. Parece que o mal se contagia dos actos ao pensamento. Quando sem usam falsos argumentos para rebater uma posição contrária a meio de uma discussão, é sobre essa pessoa que recai o maior dos opróbrios. É ela mesma que se encosta às cordas, no fundo presa à sua desonestidade intelectual e a uma estupidez sem remissão.
Da minha parte, só tenho pena que não consiga embarcar na nau pilotada pelos timoneiros de uma esquerda qualquer. Eu sei que ser de esquerda é que está na moda. Ser de esquerda é que é justo. É patrocinar as causas dos fracos, oprimidos pelos funestos capitalistas. Ser de esquerda é ser emblema da justiça social - e quem não é pela justiça social é indigno de ser cidadão. E tudo o resto que faz das esquerdas uma atractiva casa. Para minha desdita, não consigo. Por mais que me esforce, não consigo. E menos o consigo de cada vez que dou de caras com as esquerdas intelectualmente batoteiras.
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