Fico dividido perante o convite a reviver música escutada no muito distante fio do tempo passado. O revivalismo é mais forte quando esses nomes de antanho regressam da reforma e tocam ao vivo. Por estranho que pareça, sinto menos desconforto quando ocasionalmente sou acossado pelo revivalismo musical e vou ao arquivo buscar quem me apetece ouvir. Com os concertos de nomes que foram referências lá atrás, o sentimento é diferente: o apetite pela revisitação do passado fica agendado. Naquele dia, o dia do concerto, é como se fosse obrigatório ajustar a bússola para a música que vai ser tocada no palco – e para as memórias que vêm de braço dado com essa música. Os deslizes do revivalismo não se agendam. Surgem, aleatórios, sem marcarem espaço na agenda.
Estes nomes que voltam a tocar ao vivo, depois de julgar que tinham outra forma de vida, são a vitrina de sensações contraditórias. O inapelável mergulho no passado. Um pedaço da juventude resgatado, trazido até aos tempos actuais em forma da música que o emoldura na paisagem mental. Em certos casos, uma cruel comparação para os artistas envelhecidos, quando da memória se avivam vestígios de uma actuação há vinte anos. E por essa comparação, o nosso próprio envelhecimento a gritar tão alto como as vozes roucas e gastas dos cinquentões que se arrastam em palco. Então desfila diante dos olhos uma tela. Não com o passado que o revivalismo musical evoca. É a tela que põe em letra viva a curva descendente.
Estas deambulações são exercícios ingratos para quem envelhece e se aproxima da meia-idade. Exercícios inúteis, no tempo gasto com pensamentos estéreis que esvoaçaram a atenção durante os concertos de quem fez parte da iconografia musical dos finais da década de oitenta. Houvesse apenas concentração na performance e nem tempo sobrava para ligar as pontas entre a vetusta idade (artística) dos músicos e o atrelado a que vou empurrado, logo atrás deles. Há, ao mesmo tempo, melancolia pelos artistas que a idade não deixa ostentar a energia de outrora. De repente, uma ingrata sensação: como se aqueles minutos de actuação fossem uma extrema-unção dos artistas. A tão elevada probabilidade de ser a última vez que os vejo em palco.
Um esforço para afugentar a pazada fúnebre que me deixou aturdido, neste mergulho por pensamentos inutilmente profundos. Maldita ocasião para me perder no labirinto destes pensamentos, a atenção dividida entre a condoída introspecção e os decibéis que entoam, estridentes e laudatórios de uma era pessoal.
Mudança de assunto: por estes dias, em visitação a concertos vários, a insólita sensação de pertencer aos espectadores de idade mais avançada (note-se a higiénica recusa em usar a palavra “idoso”; e a falta de habituação aos anos que se vão empilhando). Desta vez a faixa etária média estava acima do meu estalão. Era o perfume do revivalismo à solta, da muita gente que ali foi para retomar contacto com um passado já distante. E é estranho como os mais jovens que no Verão peregrinam de festival em festival olham com alguma esquivança para os mais velhos que, desta vez, os cercaram em matilha numerosa. Uma desconfortável laceração de gerações. Como se os já calvos, de proeminente e adiposa pança, os que ostentam já grisalhos cabelos que pespontam as rugas espelho da mais avançada idade fossem aves de arribação que não pertencem à festividade. Só a música dos veteranos que se arrastam em palco desmente a descontextualização geracional.
O Festival Marés Vivas, a beijar as (desta noite e madrugada) mansas águas do Douro, trouxe do passado Peter Murphy e The Sisters of Mercy. Naqueles tempos éramos às vezes “góticos”, mas não parecíamos. O vento levou os sons de outrora e as palavras que tinham um significado. Não é nostalgia passadista, nem o aprisionamento pela música datada. Saí de alma lavada, incensada pelo revivalismo. Não fui em busca do passado. Sobrou o empenhamento na vida que há ainda para levar – e essa está sempre diante dos pés e não escondida detrás do ombro.
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