22.7.08

A vida quase toda num pedaço de Internet


Trazem-me pela primeira vez até a uma página de Hi5. Já tinha ouvido falar da coisa, mas nunca a curiosidade de a visitar. Talvez porque, do que me falavam, formei a ideia que é parecido com aqueles programas de televisão que metem um grupo de pessoas dentro de uma casa, com câmaras de filmar espalhadas por todos os recantos, tudo e mais alguma coisa filmando. E os actores de ocasião, contentes por exporem toda a sua vida, até os detalhes mais íntimos, a quem tenha uma enfermiça curiosidade pela vida alheia.

A impressão, num caso como no outro, de que a privacidade e a intimidade são esbulhadas. E com o consentimento dos próprios, já não vítimas desse esbulho, mas seus promotores dilectos. Eles próprios a devassarem a sua intimidade. Agora, parece que a coscuvilhice parte de si para os demais – uma inversão do conceito.

Foi por acidente que me apresentaram a uma página pessoal no Hi5. Uma colega de trabalho, imersa numa tremenda ingenuidade, decidiu fazer ligação à sua página pessoal no Hi5 na página de um evento divulgado para a juventude que equaciona a entrada numa universidade. Por portas travessas, é todo um universo de frequentadores da Internet que trava conhecimento com a vida daquela pessoa. Ali toda exposta em fotografias. A sua, a do consorte, os dois idilicamente em Barcelona (e seria em lua-de-mel?), os retratos enternecedores da boda, os amigos trazidos para ali – e teria sido com o seu consentimento?

É algo que ultrapassa a minha compreensão: como há quem se disponha a abrir a sua vida, em detalhes que por vezes entram no território da intimidade, pô-la assim toda, ou em fragmentos, na Internet? Ânsia de reconhecimento público? A Internet é um clamor democrático sem precedentes. Todavia, um perigoso ensejo para quem se quiser mostrar a toda a gente. Quem se expõe diante de um vasto universo de utilizadores da rede corre riscos. O maior deles é o de alguém espiolhar toda a sua intimidade revelada. Há um desapossamento da individualidade de quem, toldado pela ingenuidade, se inebria pelas possibilidades da Internet, versão 2.0. Para corroborar a ideia de que estamos numa aldeia global, e que a propagação da Internet aproximou mais ainda os habitantes dessa imensa aldeia onde as distâncias se desfazem em décimos de segundo.

Parece que tudo se encaminha para a diluição da esfera privada – daqueles, e numerosos o são, que se enamoram das possibilidades de partilha de informação através da Internet. Sinal dos tempos: muitos exaltam o conforto da Internet, as tantas possibilidades à distância de um clique num qualquer computador. Talvez o preço a pagar seja a exposição de detalhes de uma vida, à disposição dos mirones que andem pela rede em doentia busca desses pormenores. E talvez seja a Internet um diferente caldo de voyeurismo, uma nova modalidade de voyeurismo. Com a particularidade da existência de um imenso exército que se entrega voluntariamente no altar desse voyeurismo. Deixam de ser vítimas da propensão alheia para espiolhar a vida dos outros. Passam a ser eles os fautores desta tendência dos novos tempos. Porventura são os próprios conceitos de voyeurismo e de intimidade que devem ser repensados, redefinidos.

Ao chegar aqui, uma necessária introspecção. Os textos que aparecem num blogue, às vezes tão umbiguista, não são uma variante da exposição de toda uma vida? Pode um certo recato impedir o aparecimento de fotografias que revelem o autor e o seu entorno. Mas não é verdade que há palavras que desnudam mais que mil retratos? Palavras que ficam emolduradas no arquivo da memória, palavras que foram escritas e escancaram as janelas de uma certa intimidade. Essas palavras encerram imagens mais poderosas que um retrato. Quando isso acontece, não há mais exposição de si que em Hi5 pejados de fotografias por tudo e mais alguma coisa?

É intrigante. Como se tecem as pontes para a revelação das fragilidades que só aparecem depois de as ver algures. O que obriga a repensar o que se escreve num blogue. Para não o tornar numa versão escrita de um Hi5 sem pudor que abre de par em par as janelas da esfera individual.

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