O desassombro das almas maiores. Predestinados, nascidos para serem (ou se julgarem) gurus de seitas ao menos imaginadas. O desprendimento de tão elevada inteligência, uma assombrosa inteligência espalhada como dote que se oferece aos demais em redor. A inteligência que se ostenta com tiques sublimes, quase imperceptíveis, de sobranceria. É a inteligência que se esmaga contra quem ousa interrogar dogmas elevados a imperativos categóricos. A inteligência que esmaga os ousados que julgam descobrir uma brecha no pensamento.
Só que tão sobredotados crânios não têm brechas no pensamento. Ele, o pensamento, blindado numa imaculada perfeição. Mal dos que julgam discernir um rombo por onde se escapa alguma incoerência do pensamento – onde estaria, afinal, a imperfeição digna da natureza humana. Da pura impossibilidade: o pensamento tão elaborado, de braço dado com a tremenda inteligência que se passeia para adoração de audiências, hermeticamente selado. Insusceptível de qualquer incoerência. Pressupostos convenientes e dogmas que o são – dogmas, encerrados no seu próprio monolitismo.
Quem não se convence com tão esmagadora inteligência, os que exercem a liberdade de expressão e afinam as ideias por paradigmas diferentes, logo encerrados no altar da necedade. Não podem adversários ter a ousadia de questionar dogmas ungidos com tamanha perfeição de intelecto. Só lhes resta um destino: o desmerecimento, passarem por despeitados, palavras ao mesmo tempo simples e de uma devastação total, na desleal táctica de quem arremete com intolerância contra os que ensaiam pela discordância um abalo telúrico de tão sólidos dogmas.
Diante de sumidades deste calibre, só apetece ser entronizado no altar dos néscios. Nestas condições, ostentar orelhas de burro é elogio maior. A superior recompensa é saber que aos outros pertence a aleivosia de ridicularizar quem se coloca nos antípodas dos dogmas que se confundem com imperativos categóricos. Curiosamente, é gente que prega modismos intelectuais como o relativismo. Gente que adoça a boca com a tolerância, esteio maior de uma fraudulenta posição. A falácia em esplendor quando alguém situado em lado contrário da barricada provoca os dogmas inexoráveis. Às urtigas o relativismo e a idealizada tolerância. Estalado o verniz, fica à mostra uma têmpera: das verdades incontestáveis, afinal na negação do proclamado relativismo; e da intolerância congénita quando alguém interroga os sacratíssimos dogmas.
O pior é que estas erupções chegam de mansinho, perfumadas com uma suave ironia, sem que haja um tom agreste nas palavras que açoitam o que discorda e que, por discordar, vai arcar com o rótulo de néscio. Sem ser assim chamado. As palavras usadas é que o deixam perceber. Carente franqueza que leva a esconder a acusação em meias palavras. Um tacticismo que desnuda vilania em estado puro. A vilania que se esconde numa certa aura monástica – aos monges longe de se atribuírem maus fígados.
Mesquinhez a dobrar. A de quem prega uma coisa e pratica o seu contrário. E surge aos olhos dos outros como exemplar sacerdotisa, ungida com divinos dotes que entronizam personagem que marca o caminho que seguidores devem percorrer. Entre a perturbante intolerância que mascara a incapacidade para sentir a afronta dos monolíticos dogmas e um mal disfarçado fundo de maldade, fica a dúvida quanto ao diagnóstico. Mal por mal, prefiro quem não se esconde atrás de uma aura de santidade para ter estes alardes de indisfarçável fúria avassaladora em relação a quem ousa discordar. Prefiro quem tem a espontaneidade da maldade em estado puro, em toda a sua cristalinidade. Sabe-se, logo, com o que contar. Não é preciso deixar o tempo passar e acumular-se uma densa camada de pequenos mas significativos episódios de grotesca, mas ao mesmo tempo sublime, intolerância. Para então perceber que a perfídia maior é a de quem se esconde detrás do espelho de santidade.
Só que o espelho, de tanto se desgastar, torna-se baço. É então que tudo fica à mostra. Entre ser confinado ao altar dos néscios ou ser tão perfidamente inteligente, deixo este atributo vago e conforto-me com as orelhas de burro.
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