25.7.08

Etnocentrismo boomerang


Há presumidos do lado de cá que teimam em vincar a (alegada) superioridade civilizacional do ocidente. É patológica a necessidade de manter vivo um inimigo no horizonte. Do lado de lá encontra-se "o árabe" (com tanto de errado que a homogénea categoria encerra). Dizem: o ocidente leva séculos de vantagem civilizacional sobre "os árabes".


Eis um exemplo acabado de presunção civilizacional. Através dela desfila uma argumentação que tenta provar a nossa superioridade: compara-se o ocidente aos "árabes" e destaca-se tudo aquilo que somos e que neles está ausente. A isto chama-se etnocentrismo. Eu diria: a negação da superioridade civilizacional que tanto se reclama para o ocidente. A incapacidade de olhar para os outros como eles são. A incapacidade para ajuizar os outros sem ser pela lente com que nos olhamos é o túmulo que encerra a presuntiva superioridade civilizacional.


(Mas: de que vale perder tempo com esta discussão? Que interessa saber onde está a superioridade civilizacional? A não ser para inflamar ódios, quando a dita superioridade é esbofeteada naqueles que são remetidos à condição de civilização inferior. A não ser para alimentar o ego ocidental, porventura um pretexto para desviar o olhar da profunda crise em que o ocidente está mergulhado. Os que exibem a superioridade civilizacional são os que têm que se agarrar a uma tábua de salvação. A tábua que impede que se afundem no lodaçal onde mergulhou o ocidente. Uma aflitiva catarse que assim se ensaia.)


Também abundam os que protestam, desde o ocidente, contra a ostentação civilizacional que agride os outros. Uma espécie de contra-cultura que germina dentro das fronteiras do ocidente. Têm toda a razão em denunciar a jactância dos desesperados sacerdotes da imaginada superioridade civilizacional que o ocidente reclama para si. Pelo caminho, entre as inflamadas críticas à incapacidade ocidental para compreender "os árabes", os críticos perdem o norte. Tal como os adeptos da superioridade ocidental se calcinam com argumentos irracionais, também os que se atiram ferozmente ao etnocentrismo ocidental depressa resvalam para a mesma irracionalidade, só que com cambiantes diferentes. Todos os males residem no ocidente, são promovidos pelos que defendem a presumida superioridade civilizacional. Como se do outro lado da vedação não houvesse males a identificar. Como se lá tudo fosse um afectuoso campo de rosas onde apetece deitar.


Às vezes, os pressupostos intelectuais que fermentam a crítica – uma determinada crítica – são moldados pela conveniência. Pela conveniência ideológica, ou doutrinária, ou pela conveniência da finalidade a que uma certa militância se entrega. Os que criticam ferozmente o etnocentrismo ocidental, sem terem capacidade para apontar os males que existem do outro lado da vedação, defendem-se: uma pessoa é uma circunstância e um lugar, o lugar onde se encontra e a circunstância que vive. Estes críticos habitam no ocidente e é ao ocidente, à sua prosápia, que dirigem as críticas. Dispensam-se de fazer a análise dos males de outras civilizações, porque não é a elas que pertencem.


É um pressuposto conveniente: é que são os mesmos que ensinam que nos devemos esforçar por saltar a vedação e compreender quem se encontra do outro lado. A metodologia necessária para evitar pecadilhos etnocêntricos. Só que grita mais alto uma tremenda incoerência: como podem manter que, na crítica que fazem e na cegueira aos males que existem do outro lado da vedação, só lhes interessa combater os males que os incomodam porque estão espalhados pelo lugar a que pertencem? Por exemplo: como não é a perseguição à homossexualidade em países islâmicos motivo de condenação, logo para quem elege como um dos "combates" a igualdade de direitos entre homossexuais e heterossexuais no ocidente? A incapacidade destes críticos do etnocentrismo ocidental para condenar a perseguição a homossexuais em certos países islâmicos condensa a sua incoerência. Os homossexuais árabes são menos humanos que os homossexuais ocidentais?


Os que denunciam o etnocentrismo ocidental e depois são incapazes de condenar "os árabes" escorregam para um etnocentrismo de sinal contrário. É um etnocentrismo boomerang. Não lhes interessa reconhecer os traços civilizacionais dos que são atacados por quem eles atacam. Se o fizessem, tinham que atropelar princípios e valores que, do alto da sua suposta superioridade moral, reclamam como universais. São uma versão às avessas de Samuel Huntington. Talvez não compreendam que essa cegueira – que é uma cegueira – dá trunfos a quem combatem (os arautos da patética superioridade civilizacional do ocidente). São a prova de uma inestimável generosidade analítica do ocidente, uma incomparável (com outras civilizações) capacidade de crítica introspecção. E uma tolerância, ao dar o flanco e o rosto e o corpo inteiro, se preciso for, às críticas exacerbadas que partem de dentro. Algo que não existe do outro lado da vedação.


Regresso à casa da partida, para uma conclusão que contraria uma crença pessoal: e tudo isto não é prova de superioridade civilizacional?

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