3.7.08

Se cá nevasse fazia-se cá ski – digressão pela “história virtual”

Quem na carreira académica anda pelos meandros da investigação, habituou-se a obedecer a um código de honra que evita o convívio com a especulação. Há procedimentos que um investigador sério deve acatar: na escolha do tema, na forma como o trata, na recolha das fontes, nas citações e paráfrases que faz em homenagem à honestidade intelectual. A especulação está fora do âmbito desta maneira de fazer ciência. Porque a investigação subordina-se aos saberes naquilo (e daquilo) que eles tem conhecimento, não naquilo que poderia ter acontecido se o passado tivesse sido diferente do que foi. Os “ses” têm esse imponderável: a contingência, a revisitação do presente no pressuposto que o passado aconteceu de forma diferente. Tempo perdido: o passado foi como sabemos que foi. Esse é o passado que determinou o presente que pisamos hoje. Ainda que dele não gostemos.


Através do blog de Pedro Lains chego a uma moda que parece fazer furor entre alguns historiadores: a "história virtual". Académicos entretidos com a reconstrução do presente através de uma revisitação de acontecimentos passados. Tentam moldar a forma presente se um determinado episódio marcante da história tivesse sido diferente do que foi. Pedro Lains fornece alguns exemplos: se o rei D. Carlos não tivesse sido assassinado em 1908, a república não teria sido implantada – "pelo menos em 1910" (hipótese do historiador Rui Ramos); se nas "eleições" de 1972, Marcello Caetano não tivesse escolhido o desgastado e idoso Américo Thomaz, preferindo um "dócil" Rui Patrício, o resultado teria sido diferente – e, eventualmente, o vetusto Estado Novo teria adiado a sua agonia (hipótese do historiador Pedro Oliveira); a mais fantástica lucubrarão, a do especialista em Relações Internacionais Carlos Gaspar: não tivesse Sampaio nomeado Santana Lopes para primeiro-ministro em 2004, convocando eleições, o mais certo seria ter "acabado com o sufrágio universal para a eleição do Presidente, porque a nova Assembleia da República teria concluído que o Presidente não tinha autonomia".


Tomei conhecimento da "história virtual" num dia e, no dia seguinte, dei de caras com um secretário de Estado a embrulhar-se num exercício típico de "história virtual" em artigo de opinião no Público. Dando o seu contributo para a desesperada e pouco democrática tentativa de salvar o Tratado de Lisboa depois da negativa do referendo irlandês, Manuel Lobo Antunes, secretário de Estado adjunto e dos Assuntos Europeus, argumenta que o assunto ainda não está encerrado, que cabe à Irlanda oferecer uma solução para ressuscitar o tratado. Serve-se do passado em defesa da sua causa, alinhando por um exercício de "história virtual":


"Se não se tivesse "lutado" pelo Tratado de Maastricht ou pelo de Nice – ambos rejeitados em referendo em primeira votação – nunca estes teriam entrado em vigor e a União Europeia seria certamente muito diferente. Provavelmente sem o alargamento de 2004 aos Estados europeus sob a esfera de influência soviética até à queda do muro de Berlim; provavelmente sem qualquer dimensão económica e política de relevo ao serviço dos cidadãos europeus e da Europa no mundo."


Há ali um "provavelmente" que é a morte do artista. É pisar os terrenos da especulação, que num governante são (ou deviam ser, na presença de governantes normais) jardins absolutamente proibidos.


Devo dizer que o método especulativo me causa alguma perplexidade. Porventura por ter sido "educado" (direi, formatado?) em regras metodológicas que rejeitam derivas especulativas. Ou se prova o que se afirma, ou entramos por terrenos que não pertencem à ciência. À primeira impressão, a "história virtual" soa-me a algo que é a-científico. Está fora dos cânones da investigação científica convencional. Admito que até na investigação haja lugar a heterodoxias. Lá na universidade convivo com exemplares que navegam nessas águas, alguns dos quais todos os dias se envaidecem com o tremendo sucesso mundial, sem que isso dilua a sensação de embuste entaramelada ali pelo meio.


A "história virtual", pelo menos com os exemplos divulgados por Pedro Lains, funciona como um alçapão onde os desprevenidos podem cair. Se a ingenuidade for ao ponto de morder o isco que são as hipóteses especulativas levantadas pelos adeptos da "história virtual", caimos na discussão da viabilidade das conclusões propostas. Essa será, para quem se mantiver firme na recusa da cientificidade da especulação, a armadilha maior. Discutir com Carlos Gaspar se teriam ou não sido extintas as eleições directas e universais para a presidência da república caso Sampaio tivesse tido a lucidez de não nomear Santana Lopes, é cair no engodo do exercício especulativo. Não direi que não o fizesse em conversa de café ou numa roda de amigos; em ambiente académico é que não o faria. Por ser um método desalinhado dos parâmetros científicos em que fui educado.


No contexto académico, a "história virtual" é isso mesmo, um exercício virtual. Como se diz por estas bandas, um "não assunto".

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Essa dos "exemplares" faz-me sorrir....