Leio: “Bloco de Esquerda está contra a privatização do aeroporto Sá Carneiro”. A ladainha do costume. Haverá empresários interessados em tomar conta da gestão do aeroporto. Adivinha-se a intenção: calculam que o aeroporto é um filão. Avultados lucros no horizonte. Lucro – a palavra proibida para a esquerda caviar. É que a militância por estas bandas assemelha-se a uma religiosidade como outra qualquer: há palavras banidas, diabolizadas. O lucro que os empresários procuram é o espantalho do Bloco de Esquerda. Como em qualquer religiosidade, há um catálogo de pecados de que os crentes devem fugir a sete pés. A esquerda caviar, mal sente no ar o fétido odor do lucro, persigna-se mentalmente e apressa-se a lavrar sentença condenatória dos empresários incorrigíveis.
Não há semana que passe sem mais uns passos na persistente peregrinação pedagógica da esquerda caviar. Procuram educar as massas, trazê-las até à sua acolhedora tenda onde apenas se respira um ecológico ar despido de interesses materiais – os valores humanos entronizados no altar das prioridades. Os empresários são o inimigo de estimação. Ser empresário é sinónimo do pérfido lucro. Pérfido porque supõe a extracção de uma volumosa renda pela produção de bens e serviços. Quando o fazem, os nefandos empresários espalham o mal pela sociedade: a começar pela produção, na usurpação da força de trabalho, pois os trabalhadores são oprimidos pela tremenda desproporção entre os seus salários e os proventos apropriados pelos empresários; depois, a sede do lucro eleva os preços que os consumidores pagam, também eles penalizados pela avidez materialista dos empresários; a terminar, o lucro é responsável pela carestia dos bens e serviços. Se a sede do lucro fosse moderada, os preços seriam mais baixos, a inflação mais reduzida e a imensa maioria dos consumidores viveria melhor.
É nesta altura que seria interessante colocar de braço dado economistas e psicólogos. Estudariam a mente humana, tão adoradora do capitalismo, tão dependente do aumento do bem-estar – no que o bem-estar é, por estes dias, sinónimo de condições que empurram para a materialidade da vida. Para tristeza dos sacerdotes da esquerda caviar e dos seus seguidores, o cidadão médio é um viciado na materialidade da vida. Tão carentes de explicações sobrenaturais, onde abundam fantásticas teorias conspirativas, os fradescos da esquerda caviar depressa descobrem vestígios de uma conspiração de interesses que remete as pessoas para uma dormente dependência do consumo. É no consumismo das massas que se sacia a sofreguidão lucrativa dos empresários. Daí outro mal contemporâneo: a publicidade, culpada pelo corruptor consumismo das gentes.
Se percebo o mundo retratado pela lente da esquerda caviar: há uma minoria de privilegiados que se insinua junto do poder – aliás, a abundância de meios dá-lhes o poder – e tem o dom de oprimir a imensa maioria dos pobres e remediados que sustentam os seus lucros. É o selo anti-democrático na sua perfeição. Os empresários conspiram entre si para afundarem as massas em mais consumismo, em redobrada dependência. Para se reproduzir o ciclo interminável que autoriza a engorda dos empresários e o empobrecimento das massas. Um duplo empobrecimento: material, pelo endividamento até ao tutano; e o pior dos empobrecimentos, o que semeia a desumanização através da dependência material. Nada que importe aos empresários. Só o aumento da conta bancária é que conta, nem que seja à custa daqueles dois infortúnios alheios.
Juro que gostava de imaginar o mundo em acção se esta extrema-esquerda chegasse ao poder – como se fosse possível reproduzir em laboratório o mundo perfeito para a lente da esquerda caviar. Descontando a privação de liberdades que toma conta do seu catecismo particular, teríamos a extinção dos empresários, da iniciativa privada. Pois a Constituição teria lá um artigo a proibir o lucro. As pessoas por fim a viver um idílio: jamais dependentes do inane consumismo, livres para os prazeres do espírito. Um amor e uma cabana. E um mundo mais ecológico, com os tenebrosos empresários que já não andariam a empestar o ambiente.
Quem não percebe as virtudes da cartilha dos frades da esquerda radical só pode estar desapossado de inteligência. Ou tão possuído pela toxicodependência do consumismo que não consegue discernir o mundo tão ideal que eles preconizam. Até por isso os empresários deviam ser sentados perante um tribunal popular para julgamento sumário: culpados por este estado de coisas. E por impedirem o mundo de ser como a esquerda caviar gostaria que fosse.
Regresso à notícia: a infâmia do lucro, impedimento inultrapassável. Que interessa que os utentes do aeroporto possam beneficiar se a gestão passar a ser privada?
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