2.7.08

Estradas


Queria milhares de quilómetros. Estradas de todos os feitios. Rectas de perder de vista. Ou estradas só de curvas, tão sinuosas como bela a paisagem que as rodeia. Subir montanhas altas, ao chegar ao cume sair do carro e sentir o ar rarefeito. Descer pela vertigem que se realiza só ao cruzar o ribeiro que sustém a descida. Estradas sem mapa, aventurar por estradas sem definir trajecto. Ir por onde os sentidos, e o impulso do momento, me levassem. Nas encruzilhadas, não ceder perante a hesitação. Entroncar na estrada que o instinto insinua, sempre com sede pelo inesperado, sem recear o desconhecido à espreita. Esse, o nutriente maior da procura incessante de mais estradas.

As estradas, veias do conhecimento. Dos lugares distantes, exóticos, majestosos. Ou apenas dos tantos lugares iguais a tantos outros, na sua indiferença marcante. Desses lugares que não avivam a memória, tão finas as recordações que depressa se ofuscam na bruma espessa do tempo dobrado. Foram as estradas que deixaram um vestígio, paisagens surpreendentes, pedras amontoadas numa arquitectura inesperada, ou a esplêndida paisagem verdejante que se estendia diante da vista numa suave curvatura em desafio da extenuante planura. As planícies e as estepes, remetendo às memórias de filmes americanos. As árvores que não existem na minha terra. Sem as estradas, apenas a impossibilidade do conhecimento de um rico filão.

E, no entanto, as estradas constantemente desvalorizadas em crónicas de viagem. Os lugares é que são merecedores de encómios. Monumentos, um rio que distribui encantamento a uma cidade, as pessoas mergulhadas na sua idiossincrasia que mostra usos e costumes tão diferentes dos que estamos habituados – na diferença que cativa um enamoramento tão febril como temporário. Mas nunca as estradas. E as estradas é que nos levam aos lugares. Sem elas não haveria mercê de conhecer o mundo sempre tão enorme para a pequenez das humanas capacidades de conhecimento. Entre os lugares que povoam roteiros turísticos, os intermináveis quilómetros de estrada que saciam ainda mais a sede de conhecimento. São as estradas que despem as paisagens que seriam só um buraco negro no conhecimento. As estradas, ao mesmo tempo, sinal de outros pedaços escondidos, outras paisagens altivas remetidas ao anonimato por estarem fora das rotas calcorreadas por estradas.

As estradas, na sua imensidão, contudo pequenos pontos na imensidão maior do vasto espaço virgem, montes, vales, extensas planícies quase nunca palmilhadas por gente. É estranho como o mundo parece tão pequeno quando vemos imagens captadas por satélite. E, todavia, o mundo visto por quem nele tem os pés é de uma esmagadora dimensão – e só há consideração da terra que há por conhecer, que os oceanos oferecem uma paisagem toda igual, que apenas muda pelas contingências atmosféricas. As estradas são o vestígio de como o mundo é de uma grandeza desmedida. Se alguma vez a contabilidade fosse feita, que percentagem ínfima do mundo temos o privilégio de conhecer?

Eis a angústia superior: por maior que seja a sede de conhecimento de novos lugares, a consciência que muito mais haveria por desvendar. A geografia esmaga a pequenez humana, devolve-lhe alguma insignificância. Por ambiciosa que seja a veia do viajante, ainda que haja intermináveis quilómetros de estrada registados no património pessoal do viajante, no final do trajecto muitos mais escondidos no bornal dos mistérios que a curiosidade não teve tempo para satisfazer. Sobra a resignação da pequenez humana. Travar conhecimento com o que as estradas põem ao alcance. Empreender viagem e a cada dia programar o destino. É como ir sem destino no dia da partida. Anotar sensações trazidas pelos segredos que as estradas vão revelando: em cada promontório desfila o horizonte que esconde as novas sensações que outras estradas porão a descoberto. Há pessoas que se vão cruzar no caminho, nem que seja no impessoal trato num hotel ou num restaurante ou numa bomba de gasolina.

A ambição dos lugares desconhecidos, a ambição de tragar as tantas estradas que existem, hoje apenas linhas coloridas num mapa que se desdobra à minha frente, convoca uma sabática da vida. Como se pudesse meter parêntesis na profissão e suspender o tempo por algum tempo. O tempo necessário para experimentar uma peregrinação pelos tantos lugares e tantas estradas nunca reveladas. Num mergulho tão profundo de onde haveria de trazer à superfície um homem renascido.

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