Na rádio, o locutor fazia uma "digressão" pelos cineclubes nortenhos. A certa altura divulgou os filmes de Steven Soderbergh sobre a vida de Che Guevara. Entusiasmado, mantendo o registo da adjectivação inflacionada, ensinou aos ouvintes que os dois filmes retratavam a vida do guerrilheiro, esse – nas palavras do locutor – "ícone global". Pelo caminho, o inteligente de serviço lá foi informando que o protagonista foi corporizado pelo actor Benicio del Toro – com o pormenor delicioso de "Benicio" ser pronunciado como se tratasse de um nome italiano.
Um "ícone global" – e por aqui me retenho. Lamento desiludir o excitado animador de rádio e a sua imensa verve cultural, mas parece-me que está enganado. É o mal de certos círculos que transpiram erudição e se enamoram por qualquer manifestação que tenha alguma ressonância cultural – e alguns desses círculos até gosto de frequentar – quando resvalam para a exigível militância ideológica. Para quem seja adulador da cultura a frequência de determinada facção política é obrigatória, sob pena de ostracismo. É o relativismo no seu esplendor. E a tolerância, que tanto apregoam, a ser varrida para debaixo do tapete.
O animador radiofónico que se desengane: há, noutros quadrantes – que também merecem direito à existência, supõe-se – quem não se reveja nessa patranha do Che "ícone global". O inteligente de serviço, cheio da habitual prosápia de quem vomita cultura por todos os poros, achará que o papel que representa lhe dá a espessura de quem fixa as verdades como se fossem enquistadas, inamovíveis realidades? O rosto estilizado de Guevara pode ficar muito bem em t-shirts que adolescentes ingénuos adoram envergar (e quantos deles sabem a quem pertence o rosto que aparece nas suas t-shirts? E, dos que sabem o nome da figura, quantos têm conhecimento das atrocidades que cometeu?). Daí a dar-se por adquirido que é um ícone global vai uma grande diferença. O triste desconsolo do locutor é que não existe, nem de perto, acordo acerca do papel desempenhado pelo guerrilheiro.
O animador radiofónico até se podia socorrer dos filmes de Soderbergh. Em várias críticas (umas favoráveis, outras longe de o serem) vinha registado o tom encomiástico da biografia cinematográfica de Che. Como não acredito em santos, desconfio quando me pespegam hagiografias. Ao locutor, caso estivesse mesmo informado do que se passou e não vivesse ancorado na iconografia muito romântica do Che, apetecia perguntar se tem conhecimento das desumanidades atribuídas ao tal "ícone global". E, caso o rapaz até esteja informado, se por acaso concordaria com o registo sanguinário do romântico guerrilheiro.
Deito-me na adivinhação: vou supor que o animador radiofónico foi catequizado como deve pelos tais sectores que deificam Che. O rapaz diria que as circunstâncias explicam os acontecimentos. O de sempre: quando o registo envergonha os heróis que convêm, arranjam-se pretextos para justificar os atropelos que condenamos nos outros, nos heróis dos outros que para nós são execráveis figuras que envergonham a história. A Che, nem o melhor revisionismo histórico o salva. Logo se solta a turba sua adorada em elaboradas argumentações que procuram justificar os actos sanguinários que lhe são imputados; perante as circunstâncias, dizem, só lhe restava ser sanguinário.
Este contorcionismo intelectual é um cartão-de-visita de quem dele se serve. Em vez de ficarem atrapalhados com actos que noutros são motivo de censura, esses actos acabam por merecem glorificação. É quando execuções cruéis – as que foram sancionadas, friamente, pelo guerrilheiro em decisões arbitrárias –, execuções que em muitos casos eram a abominável vingança sobre quem ousara afrontar o barbudo guerrilheiro, são motivo de apoteose pelos seus seguidores.
Eu digo: que se deve desconfiar da gente que dá destas cambalhotas argumentativas no afã de manter Che no altar de "ícone global". Se transigem com essas atrocidades, o que podemos esperar dessa gente?