30.6.09

Os ícones sanguinários é que são bons


Na rádio, o locutor fazia uma "digressão" pelos cineclubes nortenhos. A certa altura divulgou os filmes de Steven Soderbergh sobre a vida de Che Guevara. Entusiasmado, mantendo o registo da adjectivação inflacionada, ensinou aos ouvintes que os dois filmes retratavam a vida do guerrilheiro, esse – nas palavras do locutor – "ícone global". Pelo caminho, o inteligente de serviço lá foi informando que o protagonista foi corporizado pelo actor Benicio del Toro – com o pormenor delicioso de "Benicio" ser pronunciado como se tratasse de um nome italiano.


Um "ícone global" – e por aqui me retenho. Lamento desiludir o excitado animador de rádio e a sua imensa verve cultural, mas parece-me que está enganado. É o mal de certos círculos que transpiram erudição e se enamoram por qualquer manifestação que tenha alguma ressonância cultural – e alguns desses círculos até gosto de frequentar – quando resvalam para a exigível militância ideológica. Para quem seja adulador da cultura a frequência de determinada facção política é obrigatória, sob pena de ostracismo. É o relativismo no seu esplendor. E a tolerância, que tanto apregoam, a ser varrida para debaixo do tapete.


O animador radiofónico que se desengane: há, noutros quadrantes – que também merecem direito à existência, supõe-se – quem não se reveja nessa patranha do Che "ícone global". O inteligente de serviço, cheio da habitual prosápia de quem vomita cultura por todos os poros, achará que o papel que representa lhe dá a espessura de quem fixa as verdades como se fossem enquistadas, inamovíveis realidades? O rosto estilizado de Guevara pode ficar muito bem em t-shirts que adolescentes ingénuos adoram envergar (e quantos deles sabem a quem pertence o rosto que aparece nas suas t-shirts? E, dos que sabem o nome da figura, quantos têm conhecimento das atrocidades que cometeu?). Daí a dar-se por adquirido que é um ícone global vai uma grande diferença. O triste desconsolo do locutor é que não existe, nem de perto, acordo acerca do papel desempenhado pelo guerrilheiro.


O animador radiofónico até se podia socorrer dos filmes de Soderbergh. Em várias críticas (umas favoráveis, outras longe de o serem) vinha registado o tom encomiástico da biografia cinematográfica de Che. Como não acredito em santos, desconfio quando me pespegam hagiografias. Ao locutor, caso estivesse mesmo informado do que se passou e não vivesse ancorado na iconografia muito romântica do Che, apetecia perguntar se tem conhecimento das desumanidades atribuídas ao tal "ícone global". E, caso o rapaz até esteja informado, se por acaso concordaria com o registo sanguinário do romântico guerrilheiro.


Deito-me na adivinhação: vou supor que o animador radiofónico foi catequizado como deve pelos tais sectores que deificam Che. O rapaz diria que as circunstâncias explicam os acontecimentos. O de sempre: quando o registo envergonha os heróis que convêm, arranjam-se pretextos para justificar os atropelos que condenamos nos outros, nos heróis dos outros que para nós são execráveis figuras que envergonham a história. A Che, nem o melhor revisionismo histórico o salva. Logo se solta a turba sua adorada em elaboradas argumentações que procuram justificar os actos sanguinários que lhe são imputados; perante as circunstâncias, dizem, só lhe restava ser sanguinário.


Este contorcionismo intelectual é um cartão-de-visita de quem dele se serve. Em vez de ficarem atrapalhados com actos que noutros são motivo de censura, esses actos acabam por merecem glorificação. É quando execuções cruéis – as que foram sancionadas, friamente, pelo guerrilheiro em decisões arbitrárias –, execuções que em muitos casos eram a abominável vingança sobre quem ousara afrontar o barbudo guerrilheiro, são motivo de apoteose pelos seus seguidores.


Eu digo: que se deve desconfiar da gente que dá destas cambalhotas argumentativas no afã de manter Che no altar de "ícone global". Se transigem com essas atrocidades, o que podemos esperar dessa gente?

29.6.09

O rio pedregoso


Nasces difícil, rio que te encavalitas na serrania granítica. O ténue fio de água que irrompe à superfície cavalga monte abaixo. Perseverante, esburacas o granito. És mais forte que o pétreo granito – quem diria? E, contudo, o teu curso inicial, por onde o caudal avança com esforço, faz lembrar um embrião que luta para vingar. Uma luta, dir-se-ia, titânica. A crer nas curvas que te revolvem o caudal, nos saltos vertiginosos que te transformam em cascatas, das rochas que moldas com a paciência do tempo quase infinito. Atrás do caudal que parte em demanda da sua foz, deixas um amontoado de pedras esculpidas, o teu leito cavernoso por onde o caudal nascente convoca todas as forças para derrotar a força da granítica serrania.


Percebo-te, ó rio selvagem, como metáfora da vida? Serão esses teus passos iniciais, nas escarpas que se abriram para que tu abrisses passagem, a imagem fiel de uma existência que acabou de ser criada? Diria que é tudo ao contrário da sugestiva metáfora. As vidas são fáceis quando se libertam do ventre materno. Os nascituros numa redoma de vidro, em toda a sua fragilidade, antagonizam com o selvático meio por onde o rio nascente tem que fazer o seu caminho. Ao contrário: no rio nascente o trajecto inicial é o mais sofrido. Quando as alturas da serrania ficaram para trás, o rio amansa à mercê da planura do terreno. Acalma o caudal, já cansado, no lento percurso até encerrar os olhos na foz que o espera.


É a contemplação da desordem que compões quando as tuas águas se soltam da nascente que me extasia. O caos que só a natureza amplia. Uma revoada de calhaus. Uns pequenos, outros de grande porte, perturbam o teu leito. É contra as pedras que as tuas águas se esmagam. Às vezes, as águas repousam por breves instantes em lagoas, dir-se-ia, aluviões de descanso onde elas amainam da árdua labuta. Não se demoram na quietude das lagoas fundas. Logo se precipitam no declive do terreno, ora suave, ora pronunciado. Quando as pedras atraiçoam o passo e um degrau vertiginoso está pela frente, o cadafalso empresta ao caudal a fúlgida forma de cascata. É quando a fúria das águas adultera a sua cristalina pureza, transformando-a em espumosa torrente, um manto branco que se substitui à transparência do caudal.


E o rio debate-se, rompendo a serrania dura em precipícios assustadores e curvas pronunciadas. Parece que o caudal sente o pulso à serrania, insinuando-se por onde os montes se tecem nas suas escondidas fragilidades. Nunca linear, nunca devagar, o inicial caudal é uma apressada língua de água que esburaca as duras rochas serranas em demanda de paragens vagarosas. É como se o rio nascente depressa se cansasse da sua infância, atormentada infância escavada entre paredes escarpadas, e buscasse um lugar onde as águas possam vogar na sua mansidão.


Mas é lá em cima, quando o rio nascente se precipita pelas cavernosas paredes que o comprimem numa camisa de varas, que ele exala o seu fascínio. A acareação da natureza com o seu estado bruto, indomável. E toda uma lição: de como uma titânica luta de desiguais se converte na vitória da parte que à partida parecia a mais fraca.


O simbolismo, só por aqui. Desengane-se quem ousar tecer pontes com a existência humana. Tudo no seu contrário: a infância da vida humana toda protegida num hermético casulo, ao contrário das águas que se fazem selvagens, uma força indómita para vergar a resistência das robustas pedras no curso inicial por onde se escava o caudal. Analogia, só quando se olha aos passos derradeiros da existência humana, consumidos que são pelas forças exangues. É como no rio já domado pela planura do terreno, onde os verdejantes aluviões tomaram o lugar das graníticas constelações de rochas. Num e noutro caso: as águas fluem, só à espera de serem tragadas pelo suspiro fatal.


Também a existência tem a sua foz derradeira. A sua exaltação, lá nas alturas onde o rio escava o seu caminho no pedregoso leito.

26.6.09

Presunção

Terá sido por causa do texto de hoje que isto foi decidido?

Se isto não aconteceu, bem podia ter acontecido


Gabinete do primeiro-ministro, Lisboa. O dito cujo em conciliábulo com o ideólogo do regime e com o seu braço direito (dizem, o clone do querido líder). Ainda estavam atarantados pelo choque telúrico das eleições europeias. Combinaram: encarregariam a empresa que lhes trata da imagem para saber como foi possível o erro dos especialistas das sondagens ao darem o único partido credível sistematicamente como vencedor, quando afinal a maioria da maralha apostou no detestável maior partido da oposição.

Andavam às voltas com a derrota – que é mais amarga quando é inesperada –, num brainstorming que pretendia encontrar uma estratégia para limpar a imagem danificada. Ou até a vitória nas eleições legislativas pode estar hipotecada.


Primeiro-ministro – Ó Augusto, tu como ideólogo do regime, és o único de nós os três com capacidade para pensar alguma coisa com cabeça, tronco e membros. Diz-nos lá o que te passa pela cabeça?


Ideólogo do regime – Zé, nesta altura a maior oposição que suportamos não é daquele partido alaranjado. É a TVI que mais dano causa na imagem que tanto nos esforçamos por tratar.


Primeiro-ministro – Já tentámos manipular os cordelinhos para enviar o Moniz para o Benfica. Até aqui fracassámos. Definitivamente, as coisas não andam a correr bem nos últimos tempos.


Ideólogo do regime (com os olhos a brilhar, sentindo que descobriu a pólvora) – Se não vai a bem, vai a mal. Para tudo há uma solução. (E fez uma pausa para saborear a curiosidade dos comparsas).


Clone do primeiro-ministro (boquiaberto, pois as suas capacidades não alcançavam a estaleca intelectual do ideólogo; por alguma razão é o clone do chefe) – Augusto, não estamos a ver aonde queres chegar.


Ideólogo do regime – Acompanhem o meu raciocínio: o Estado tem uma "golden share" na PT, não é verdade? E se nos aproveitássemos do pretexto do interesse vital das redes digitais e movêssemos umas influências para que a PT mostrasse interesse em comprar uma quota significativa da TVI?


Primeiro-ministro – Não é mal pensado, sim senhor. Ainda há dias, em conversa com o José Luís [Zapatero], ele confidenciou-me que os companheiros da Prisa se querem ver livres da TVI.


Clone do primeiro-ministro – Mas…mas, isto não vai dar nas vistas? Há por aí muita gente que anda vigilante, a ver se pomos o pé um ramo verde, se nos metemos em trapalhadas. Não vão associar a PT ao Estado, o Estado ao governo, e daí a intenção de mudarmos a linha editorial da TVI? Ainda somos acusados de asfixiar a pluralidade informativa.


Primeiro-ministro – Ó Pedro, não compliques as coisas quando elas são simples. Aposto que o Augusto já pensou em tudo, não é Augusto?


Ideólogo do regime – Acham que ando a dormir, que congemino as coisas em cima do joelho? Por algum motivo me consideram o ideólogo do regime (rematou, em pose triunfante).


Primeiro-ministro – Vá lá, não passes das marcas. O artista da companhia sou eu (advertiu, incomodado, sentindo ali um desejo de partilha de protagonismo que o seu imenso narcisismo achava inadmissível).


Ideólogo do regime – Longe de mim, longe de mim, senhor primeiro-ministro. Sabe que a minha lealdade é inquestionável. Eu pensei as coisas da seguinte maneira: mandamos instruções ao Granadeiro para negociar com os espanhóis a compra de uma grande fatia da TVI. E instruímos o Granadeiro para se fazer de inocente, desmentindo as negociações.


Clone do primeiro-ministro – E quando formos encostados às cordas no parlamento? Apesar de fraquinhas, as oposições não andam a dormir. Temo que isto seja um trunfo para as oposições.


Ideólogo do regime – Não sejas inocente. Nessa altura desmentimos tudo. Aqui o Zé puxa da sua imensa capacidade retórica, aquela capacidade que só ele tem para contar uma patranha com o ar de quem conta a maior das verdades, com o ar ofendido de quem não admite que lhe chamem mentiroso. Como podem as oposições provar que estamos a mentir? É a palavra deles contra a nossa. Assim como assim, o povo português sabe distinguir quem tem credibilidade – e somos nós que a temos, não as fraquinhas oposições.


Primeiro-ministro – Tens a certeza, Augusto, que o povo português confia na nossa credibilidade?


Ideólogo do regime – Eu sei do que falo. De cátedra.


Primeiro-ministro – Está combinada a estratégia. Até me cresce água na boca só de imaginar o dia em que o Moniz e a consorte deixarem a TVI. Nesse dia, este país será um lugar idílico: teremos toda a comunicação social na mão. Por fim, calaremos as vozes dos palermas que não percebem a nossa imensa qualidade.


Clone do primeiro-ministro – Bate tudo certo. A estratégia parece infalível.


Primeiro-ministro – É bom que seja. Tenho mesmo que ganhar as eleições. É que já andei lá fora a sondar a possibilidade de fazer carreira internacional. Tudo gente estúpida: ninguém mostrou interesse que eu chefiasse uma qualquer organização internacional. Pedro, telefona ao Granadeiro.

25.6.09

De máquina de calcular em riste e binóculo afinado


À consideração dos meus colegas que estudam o fenómeno da comunicação social.


Caros colegas: não sei se seguem a minha linha – um investigador não muda o estado de coisas que investiga, limita-se ao diagnóstico. Mal de mim se pedisse para afinarem o diapasão pela impiedosa crítica ao padrão dominante da imprensa a que temos direito. Seria a maior das incoerências pessoais: o que pedia seria o contrário do que apregoo como ciência. Todavia, vejo o passeio triunfal, a soberba até, da imprensa e às vezes apetece-me vomitar. Dizem: quem não se dá ao respeito, como pode ser respeitável? Pois é assim que vejo grande parte da comunicação social que se enlameia com aspectos mundanos. Só porque está consagrado que a imprensa deve trazer as notícias que engordam as preferências da audiência. Nesse caso, a imprensa perdeu o rasto ao papel pedagógico. Agora é o público que ensina a imprensa. A seriedade deixou de interessar à imprensa?


Vem isto a propósito do corrupio que a transferência de um jogador de futebol provocou nas páginas dos jornais e em canais de televisão (da rádio nada digo; a estação que ouço é discreta a veicular notícias). Dizem: milionária transferência. Opinam muitos: obsceno o valor que um clube pagou para resgatar o contrato do futebolista. Daí a termos vastos sectores da imprensa a sacar da máquina de calcular para desmultiplicar as inúmeras possibilidades de conversão do valor da transferência, foi um curto passo. Ficámos a saber que Ronaldo vale o seu peso em ouro não-sei-quantas-vezes, que vale não-sei-quantos Boeing, ou que a ainda mais pornográfica (asseveram os moralistas) cláusula de rescisão fixada pelo novo clube do "craque" equivale a zero-vírgula-não-sei-quanto por cento do PIB pátrio, um ultraje à pobreza que consome o mundo. Outros quiseram ser ainda mais explícitos: Ronaldo vai ganhar uma pipa de massa por ano – o que significa que em dois dias ganha tanto como o presidente da república (e talvez assim se entenda a intervenção "preocupada" de sua excelência). Em tudo isto, um mérito, ao menos: houve muita gente a melhorar a proficiência matemática.


A seguir, o "craque" foi de férias. E todos fomos com ele para LA, Califórnia. Quem quis continuar a ler a saga pelas páginas dos jornais, sensacionalistas ou não, foi partilhando as notas de débito que o cartão de crédito muito dourado ia pagando: noites em suites que custam uma fortuna; fortunas gastas em garrafas de champanhe em discotecas da moda; e o mais que foi esquadrinhado. E fomos para a rambóia com uma socialite duvidosa. Só faltou partilharmos o quarto para sermos testemunhas das "proezas" carnais do "craque" – que logo houve por aí alguma imprensa, eu diria mais achacada ao marialvismo, que se apressou a glosar as palavras da tal socialite, pois ela gabou as "façanhas" do "craque". Como se a lusitana homenzarrada toda ficasse automaticamente aferida por estas "proezas" do craque. Ó fraca estirpe! Pobres daqueles que fazem suas as escapadelas dos outros. E, ainda por cima, levitam pessoais frustrações em páginas de jornais.


Depois o "craque" atravessou o Atlântico de regresso à pátria que se embeiçou, enfatuada, por o "craque" ser o "maior do mundo". Outra vez o doentio diagnóstico: como se a pátria deixasse de ser um inditoso lugar só porque um dos seus vingou no estrelato do futebol. Soubemos: que o "craque" voou em avião privado (vai-se lá ele misturar com a maralha…), que pegou no seu Ferrari, que andou a fazer compras nas suas lojas preferidas (para acentuar aquele ar imensamente azeiteiro que vem esmerando), e que foi de abalada para o Algarve com a trupe familiar em peso. Até tivemos direito a saber que as refeições são servidas por uma certa empresa de catering.


Eu digo: a pior profissão do mundo, nestes dias de voyeurismo compulsivo atilado pela imprensa embriagada pelo sensacionalismo, é ser famoso. Ou jornalista destacado para cobrir, ao milímetro, todos os passos dos famosos.


Tenho uma dúvida que não consigo esclarecer: a imprensa é assim tão mole porque a convenceram a dar ênfase ao que o povaréu gosta de ler e ver, ou porque os jornalistas que dominam são da mesma têmpera do povaréu? Conseguem, caros colegas das Ciências da Comunicação, dar resposta a esta dúvida?

24.6.09

Agente provocador


Querias ultraje. Querias tempestade intelectual. Esgrimir argumentos. Que interessavam os que se aproximavam das tuas ideias? Só se fosse para logo a seguir deles te afastares. Odiavas odes afinadas. Era patológico: pois nem tu, na tua sublime mas propositada incoerência, concordavas contigo mesmo.


Arremetias com ferocidade contra certezas. Abespinhado contra os cultores de verdades irrefutáveis. Só que também mergulhavas nas ideias que transportavam conclusões. Que julgavas, no exacto momento em que as retiravas, lapidares. Logo a seguir seguias um distanciamento que ia ofuscando as certezas que depressa perdiam espessura. Eras o melhor trunfo para adversários de peleja. Não perdiam uma oportunidade para te esbofetear com os insondáveis mistérios das erráticas coisas que pensavas e dizias. Uma báscula saltitante, a fugir de compromissos com o que tivesse ressonância com "certeza" e "verdade" (as demoníacas divindades).


A certa altura procuraste refúgio seguro, um castelo sossegado onde não houvesse árdua tarefa de tecer os fios de pacientes raciocínios. Era como se em teu redor houvesse uma barreira de coral. Intransponível barreira de coral. Não filtrava as ideias alheias que decantavas da literatura avidamente consumida. Era pior: naquela barreira de coral, as águas sempre mortiças. As águas cheias de nutrientes, as águas alimentadas pelo mar alto, não passavam da embocadura que a separava do mar aberto. Entravas em estado de negação. Um comodismo metódico. Sempre era mais fácil recusar o que te entrava pelos olhos do que uns olhos a irradiarem um pensamento qualquer vindo de – sentias – provectos neurónios.


Em estado de negação, cresceu a afeição por uma travessura: desmontar as incontestáveis certezas dos paladinos de certezas incontestáveis. Tinhas um prazer sórdido quando desabavam, em ruínas, os edifícios que vinham de preces alheias. Era-te indiferente o isolamento. Indiferente a que te achassem aberrante figura, excêntrica personagem que se entretinha a destruir o que outros tinham acabado de edificar. Os prazeres decantavam-se na provocação, umas vezes escrupulosa, outras vezes pelo simples gosto de provocar quem ficasse a jeito de ser provocado. Ias esmerando um terrível mau feitio. E assim te encerravas na torre de marfim que escondias, num mundo muito particular, dos olhos indiscretos.


Envelhecias. Dir-se-ia: apressavas o envelhecimento. Os espelhos ausentavam-se da tua torre de marfim, onde os ecos do que dizias se perdiam na noite infinita. Havia quem entendesse a rebeldia que irava os que provocavas? Um punhado de gente. Uns por habituação, gente da casa – da casa com paredes e telhados a sério, não da imaginada torre de marfim. Outros por intuição, um golpe de asa, um acaso da sorte. Quando escutavas a contraposição das provocações, fervia uma irreprimível teimosia. Dar o braço a torcer; não era função que conhecesses. Podias admiti-lo nos esconderijos onde guardas os segredos que mais ninguém conhece. Jamais em público, ou perdias a noção da destrutiva metáfora do mundo que te acolhia.


Desse mundo que te repugnava. Ó, odioso malabarismo das negações, que consumias a razão de uma existência. A certa altura, já seguias anestesiado pelos apodrecimentos de todos os lugares. Só cheiravas o ar putrefacto de gente bem composta, os algozes do alindamento de um mundo que te parecia, a cada dia que passava, mais insuportável. Estranhamente, era nisso que encontravas nutrientes. As malsãs cores com que tudo vinha pintado eram o agridoce manjar que ora te enjoava, ora te arrebatava os sentidos. Deste contigo abraçado a um interminável rol de contradições: ora era castigo de umas ideias ou de umas palavras, ora te empenhavas em destronar a vivacidade dos que nisso contigo outrora alinharam.


Às vezes surgia esta pergunta diante de ti: e se fizesses de conta que és o contrário do que és, só para experimentar método de que tens aversão? Aconteceria gostares até de ti? Acabaria essa saga, a de seres agente provocador – e de ti mesmo, por cima de tudo o mais?

23.6.09

Trono da misericórdia


Deve ser predicado cristão: as pessoas têm que mostrar piedade com os desvalidos. Para depois fazerem gala da misericórdia. Os desgraçados de toda a espécie convocam a comiseração, sentimento dir-se-ia cristão – os cristãos diriam tratar-se apenas de um sentimento humano. Tenho para mim que a misericórdia apazigua a consciência de quem a pratica, sem cuidar dos que caíram na miserável condição que apela à compaixão.


A palavra maldita, quando se puxa lustro à misericórdia por outros, é "coitadinho". É humilhante. É, ao mesmo tempo, o lacre da suprema ignorância de quem a profere. Às cavalgaduras convencidas que compram a prestações um lugarzinho no céu à medida que forem fazendo misericórdia, nunca ocorreu adivinhar como se sentiriam se trocassem de lugar. Se, por um acidente de percurso, lhes calhasse em azar serem os destinatários da piedade alheia. Não quero acreditar que lhe comprazesse serem tratados com comiseração. Das duas, uma: se, por hipótese, gostassem de resvalar para vítimas da misericórdia, talvez assim selassem a sua profunda ignorância; ou é errada a lente pela qual filtro o problema.


A piedade não é descomprometida. Confunde-se com solidariedade, que deve ser desembainhada quando diante de nós surge um necessitado de qualquer espécie. A solidariedade foi inventada para socorrer os sobressaltados pela desgraça. Mandam os padrões: é quando somos tomados por nobres sentimentos que nos engrandecem. Desprendemo-nos da umbiguista individualidade e entregamos parte de nós aos desvalidos – nem que seja apenas (que este apenas é de uma grandiloquência pedante) acenando o véu da misericórdia.


Há um círculo vicioso na comiseração. Fazemos bem aos carenciados e, no rescaldo, sentimo-nos tão bem com o nosso eu. Se a misericórdia apenas corresponde a desonerar uma responsabilidade que vem de fora, só com o propósito de mostrar que fomos piedosos e achamos que os que receberam a nossa piedade se reconfortaram por dentro, a misericórdia é uma coisa vã. É um grotesco acto de egoísmo. O pior dos egoísmos, pois aparece mascarado com o véu da generosidade com os outros. O que conta é o sentimento que nos invade depois de praticarmos a comiseração que se impõe. Pouco importa se a piedade faz bem ou mal aos que a recebem. Pouco importa se os "coitadinhos" que assim tratamos se sentem humilhados com o tratamento. A misericórdia é uma falácia. Uma estrada de sentido único, por onde se passeia o invisível egoísmo.


Podem contrapor: e o que conta não é o acto e os efeitos que dele se aproveitam? Que interessam os meandros da comiseração se, no final da linha, houver quem se sente reconfortado? O preço que os desvalidos pagam por receberem a misericórdia dos "bem-postos" na vida é insuportável. É a humilhação a que se expõem de cada vez que os piedosos os fitam com ar de comiseração e se lhes solta o ultrajante "coitadinho". E os "bem-postos" na vida desembaraçam-se, de um golpe só, da atormentada consciência de estarem bem na vida – como se estar bem na vida fosse sórdido crime.


O mal pode estar na minha errada perspectiva, mas vejo os meirinhos da misericórdia como gente sobranceira que se encavalita num trono de onde asperge generosidade para que os necessitados o sejam menos. Todavia, ascendem a um trono, de onde olham, de cima para baixo, para a gente necessitada. Com honrosas excepções (os que fazem da ajuda aos carenciados um sacerdócio pessoal, com total descomprometimento), a gente excessiva que exige a si mesma a prática frequente da comiseração eleva-se ao pedestal da misericórdia. Um pedestal não deixa de ser um pedestal, nem que os que lá se colocam digam, como pretexto, que precisam do púlpito para praticar a caridade. Já que tanto se deifica a mirífica igualdade, só esta interrogação: como é compatível o trono da misericórdia com a igualdade, se o trono amplia o fosso entre os misericordiosos e os desvalidos?


Proponho a abolição da misericórdia? Longe de mim. Só proponho que a misericórdia seja silenciosa e discreta. Sem a espectacularidade da comiseração habitual, feita para mostrar que houve misericórdia feita. Essa é auto-misericórdia: a antítese da misericórdia.

22.6.09

A vida é simples. E essa é uma coisa complicada


Sabes: às vezes não é preciso escalar as serranias escarpadas que se amontoam diante dos olhos. Nem é preciso inventar as palavras embotadas, como se elas fossem um lampejo de originalidade, para confessar estados de alma. As dores que nos consomem, quantas vezes as inventamos? Parece que grita, ensurdecedor, o cansaço das coisas na sua simplicidade.


É então que entra o trovão da complexidade. Dirias: a inteligência, ou apenas o mero pensamento, renegam a simplicidade. Porventura confundem-na com simplismo – essa terrível maleita onde campeiam os lugares-comuns, a lhaneza da existência na sua imoderada mesquinhez. Atraiçoa, o pensamento: atraiçoa-se pelas aparências da simplicidade. Não percebe que a simplicidade é a agradável planície onde o corpo não se cansa, onde todas as flores se passeiam em redor, perfumando a existência com um sentido que não seja uma condoída peregrinação que sangra por dentro.


O refúgio nas complexas coisas é a tirania dos paradoxos. Sabe-se o que é de evitar e, todavia, os passos transviam-se pelos caminhos que se encontram com o aroma da complexidade. É como se, diante de uma encruzilhada, rematasses pela estrada que sabes ser sinuosa, com uma tremenda inclinação para acidentes, a pedregosa estrada que ensanguenta os pés. Será a adrenalina a irromper, sufocando a pacatez que aconselhava a empreender pela estrada plana e larga, sem curvas traiçoeiras? Talvez o paradoxo não seja irracionalidade. Talvez a demissão das coisas simples. Por suspeitares que elas não apimentam a existência.


A acidentada estrada por onde arremetes é sobressalto constante. Não há um dia sem dissabores. Não há um dia que passe sem que a angústia te faça arder as veias. Às vezes, sentes que as entranhas se derretem na viscosidade que expeles, no azedume que destilas diante das dores do mundo que são tua consumição. Como podes fechar os olhos às insídias do mundo? Farias melhor se fechasses os olhos num simulacro do que te cerca; serias um oásis, ou um arquipélago inacessível ao cavernoso mundo, mas uma vilania a ti mesmo. Apenas uma fuga, covarde como são todos os refúgios que se escondem num manto de simplicidade.


O pior de tudo é que o entorno se contagia, deixa-te perturbado e sem reflexos para aplacar as dores que te deixam mortiço. Muitas vezes pareces ceder, resignado, sem força nem vontade para resistir ao caudaloso leito que desgasta o corpo. Reparas na erosão, como nas praias a notas nas rochas arredondadas pelo alisamento feito pelas furiosas ondas do mar. Gostavas que as coisas fossem o seu contrário. Que a simplicidade derrotasse a impenitente complexidade que verte as perenes dores que já nem são dores de tanto doerem.


O labirinto tem as paredes encardidas pela humidade bolorenta. Parecem camadas sucessivas de labirintos sobrepostos, um que não tem fim e logo outro a insinuar-se no seu estorvo. E, no entanto, o enamoramento por estes labirínticos corredores é que te parece animar. Já experimentaste a monotonia das coisas simples. Temeste que a indigência tomasse conta. Temeste que a anestesia dos sentidos fosse o muito elevado preço a pagar por uma reputação de quem torneia as contrariedades, como se torneá-las fosse a solução para os enigmas que te supliciam.


Não é o longo bocejo que preferes. Uma existência agitada, atribulada até, compensa a prostração da enganadora simplicidade das coisas. Sabemos que a vida é uma coisa simples, se quisermos. Só não temos a certeza se declinamos os desafios que surgem pela frente. Não sabemos se nos demitimos de nós mesmos. Esse é o desafio mais complexo que temos, todos os dias. Dizeres que a simplicidade da vida é atraiçoada pelo alçapão da complexidade é um tremendo lugar-comum, um espartilho à grandeza do ser.


A simplicidade é o ensimesmamento a que nos reduzimos quando teimamos em ser inacessível arquipélago.

19.6.09

Obama Sheltox


Obama matou a mosca e o mundo parou para se embevecer. Obama é tão magnífico que até inoportunas moscas consegue varrer do caminho. E o mundo inteiro (ou a caminho de o ser) aplaude, extasiado, os dotes do homem que, arrisco daqui, devia ser elevado à condição de líder do mundo.


É impressionante como um fait divers ganha espessura de notícia. Obama a ser entrevistado para um canal de televisão. Uma mosca esvoaça à sua frente, causa comichão e perturba o clarividente raciocínio do líder simpático. Interrompe o raciocínio: a irrequieta mosca pousara na sua mão esquerda. Tensão nos segundos em que durou o silêncio. Levanta a mão direita, sorrateiramente. Com um golpe seco esmaga a mosca que repousara na presciente mão que conduz o mundo pelas ruas da esperança. O insecto jaz morto no tapete, junto aos pés do presidente dos Estados Unidos. Ao meu lado, no café, a mulher cinquentona, mulher do povo, exclama com sotaque portuense inflacionado: "este home é um espectáculo!"


E não é que Obama é um espectáculo? Tirando os malvados dos fundamentalistas islâmicos que nunca estão contentes com nenhuma liderança do "Satã americano" e alguns teimosos no mundo ocidental que resistem ao encantamento por Obama, quem, no seu juízo, pode contestar a impressão "espectacular" que exala da figura? Obama mata a mosca e a proeza aparece no tempo dos noticiários. Obama tem um cão de raça portuguesa e isso alimenta a nossa admiração e enfatua o ego pátrio. Obama, coitado, teve que abdicar do inseparável Blackberry porque os zelosos serviços secretos apontam razões de segurança, e o mundo (quase) inteiro condói-se com as dores interiores de Obama. Um dia destes, ficaremos a saber: a que horas se levantou Obama, o que tomou de pequeno-almoço, o livro que está na mesinha de cabeceira, uma dor de cabeça que o levou a tomar um analgésico, o poema que escreveu à primeira-dama (também uma "mulher espectacular", anote-se) num intervalo de arrebatamento amoroso entre duas importantíssimas reuniões com generais de Pentágono e com cinzenta gente dos serviços secretos, e o mais que se possa imaginar.


A destreza para matar insectos junta-se a todos os predicados que contribuem para o enfeitiçamento (quase) global por Obama. Hipnose (quase) global. Obama matou a mosca e nem um ai pesaroso, ou um protesto inflamado, dos militantes da causa ambientalista – ou a mosca será um animal que ocupa uma escala inferior na ordenação dos que protegem os direitos dos animais? Tudo isto entra para as estrofes que compõem a melodia do Obama "very cool", o Obama porreiro que aparenta ser um de nós. O poderoso presidente dos Estados Unidos na imagem do homem de rua, do homem comum. Há sintoma mais claro da democratização do poder?


Por quanto tempo mais há-de continuar o mundo (quase) todo enfeitiçado por esta cortina de espelhos, pela fantasia que se oferece no papel de celofane de uma imagem tão bem forjada? Se os governantes se interessassem mais pelo que fazem e não pelo que mostram ser, o episódio da mosca ficaria reservado aos arquivos de filmagem daquela estação de televisão, ou ia parar ao YouTube. Vimos como Obama fez o auto-panegírico, convidando o homem da câmara a filmar o insecto jazendo no seu leito de morte. Só para que o mundo (quase) inteiro testemunhasse e se inebriasse, pois aquilo não tinha sido uma encenação, que Obama tem um killer instinct para maçadores insectos – é, pois, como as osgas, que as osgas são conhecidas por essa habilidade. E, repito, nenhuma associação de defesa dos animais esboçou um protesto.


Habilidades, há-as no circo. Ao circo bate-se palmas. Uns segundos para pensar: se calhar, eu estou errado e as coisas como elas são é que estão certas. Não é que estamos cansados da política muito séria, sempre ocupada por muito cinzenta gente? Por uma vez que seja, a política circense, a política que nos entretém, para que a esperança e o optimismo resplandeçam. Que interessam as políticas, as decisões, os efeitos que elas vão ter daqui a uns anos, os efeitos que os outros países – os que não elegeram Obama – vão suportar por causa de um efeito de contágio que ninguém consegue evitar? De repente, esta impressão: que tudo isto é que é o verdadeiro circo.

18.6.09

Isto não é uma defesa de Berlusconi


Que não tem defesa possível tão patética personagem. Quando um coro de almas indignadas protesta contra a algazarra que ia na sua casa de férias na Sardenha, com fotografias de beldades femininas como vieram ao mundo em alegre convívio com homens de meia-idade, só faço esta pergunta: não percebem os cães de fila que quanto mais invadirem a intimidade de Berlusconi, mais o fortalecem?


Têm dúvidas? O escândalo eclodiu em vésperas das eleições europeias. O partido de Berlusconi ganhou as eleições. O que deixa supor que há uma maioria de italianos que não se importa que Berlusconi leve uma vida airada e tenha as hormonas aos saltos (porventura com a ajuda de alguns comprimidos de cor azul, que estas coisas nos septuagenários não condizem com milagres). Oportunidade para o julgamento que as esquerdas costumam fazer quando a vida lhes corre mal nas urnas de voto: perplexidade e incompreensão com as escolhas dos eleitores (ficando no ar a insinuação – torpe, muito torpe – de que os eleitores têm inteligência diminuída).


Para a maioria dos italianos, a vida privada não interessa quando estão a ajuizar os candidatos através do voto. Eu tenho a sensação que os eleitores, por mais que os "catedráticos" lhes pespeguem a inteligência desmaiada, têm mais sensatez do que os iluminados ainda boquiabertos com a escolha popular. Tanta algazarra, com fotografias que escandalizaram tanta gente – ele é lá possível que meninas com maminhas ao léu passeiem à beira da piscina da casa de férias de um primeiro-ministro? – mas a maioria dos italianos continuou a preferir os candidatos de Berlusconi. Diagnóstico, só para aborrecer as almas puritanas que ainda seguram o queixo com tanta indignação: é sinal de que a maioria dos italianos (homens, e mulheres também) aprova a vida doidivanas em que Berlusconi se meteu agora que está divorciado. Imagino o típico macho italiano, boçal como são todos os machistas, a invejar as façanhas do primeiro-ministro, dizendo para quem quiser ouvir: "faz ele muito bem; eu fazia ainda pior". (Neste caso o sentido da palavra "pior" tem que ser apurado: pois "pior" até pode ser entendido como "melhor"…)


Que gente de esquerdas diversas reprove os apetites carnais de Berlusconi e se ponha a perorar sobre o que pode ou não o primeiro-ministro fazer na sua vida privada, é todo um programa de comportamento. Não sei se esta polémica goza da condescendência dos que acham que na "luta política" vale quase tudo. Até a devassa da vida privada. É e curioso ver tanta gente que milita em esquerdas, sempre disposta a pactuar com a desconstrução de usos sociais, e depois ver esses subitamente puritanos sacerdotes horrorizados com tão pecaminosos actos do adversário político. De repente, passou-me uma miragem pela vista: essas esquerdas de braço dado com o Vaticano (o que, para os tempos que correm, já nem é tanta heresia recíproca como se julga). Só mais uma pergunta: a indignação não teria sentido contrário se o paparazzi de serviço tivesse tirado uns retratos a um político das esquerdas apanhado a meter a faca no matrimónio? Com o episódio Berlusconi, o paparazzi foi glorificado; na hipótese que coloquei, seria crucificado.


Eu gosto de ver as esquerdas a serem tão moralistas. E gosto de as ver a espezinhar o valor da igualdade que, pelo menos na retórica, é por elas tão sacralizado. Percebo que elas fiquem exasperadas com as diatribes, a verborreia ridícula, a tendência para o lapsus linguae, os actos desastrados que, por junto, são o património genético de Berlusconi. Sobretudo quando, apesar de Berlusconi, ele continua a ganhar eleições. A devassa da vida privada como instrumento de luta política dá uma ideia da "política suja" e do catecismo estalinista que permanece vivo, nem que seja no plano das reminiscências.


Berlusconi é uma aberração? É. Vai ser derrotado com estes ataques soezes? Duvido. Há outra culpa que atiro para cima das esquerdas desesperadas: à conta destes imbecis pés-de-vento, vejo-me a defender tão aberrante personagem.

17.6.09

Devo andar distraído, ou o presidente da república tem pouco jeito para a função?


Há gente que não nasceu para desempenhar certos papéis. Cavaco, por mais grave que seja a pose, para assim se cobrir de respeitabilidade institucional, não é um corpo talhado para aquela solene fatiota. Aqui vai um deslize que me põe a jeito da crítica (até arrostar com o rótulo de "fascismo social"): a falta de berço não tem emenda.


A alternativa também não é simpática para sua excelência: trata-se de incontinência verbal. Falta saber se o é espontânea, ou se corresponde a uma estratégia dos seus conselheiros. Neste caso, maus conselheiros o rodeiam. E fraco é o discernimento de sua excelência, que podia colocar os conselheiros em sentido se fizesse ver que os deslizes opinativos o prejudicam na função em que está. Se a incontinência verbal ganhou carta de alforria em relação aos mestres da comunicação com o exterior, fica provado como é actor errado para o papel.


Nos últimos tempos o senhor presidente tem escorregado para o chinelo. Foi na Turquia, com graçolas que revelaram a falta de jeito para ser humorista. Cavaco é daquelas pessoas que, por mais que se esforce, não sabe contar anedotas (é como aqueles engraçados que se ficam a rir das anedotas que contam, perante o ar perplexo dos ouvintes). Uns dias mais tarde chamou a imprensa para revelar detalhes da sua vida financeira, só para se ter a noção que sua excelência não abocanhou lucros duvidosos com as poupanças canalizadas para o banco abcesso, o BPN. Agora perorou sobre a transferência exorbitante de um futebolista seu patrício para o Real Madrid. Sua excelência anda tão desocupado, ou despreocupado com as más andanças do mundo, que até lhe sobra tempo para comentar o fait divers. Um presidente eclético.


Interessava saber dos descaminhos das poupanças do senhor presidente e da "sua Maria"? Por este andar, só faltava vir mostrar extractos bancários para se saber onde o casal presidencial colocou as suas poupanças e, já agora, quanto conseguiram amealhar durante uma vida de trabalho. Cavaco põe-se a jeito dos bisbilhoteiros profissionais que adoram vasculhar na vida alheia. Começou pelas finanças do casal presidencial; onde irá isto parar? Por imperativos de sanidade mental, da minha parte peço, encarecidamente, que nos poupem outros detalhes de vida em família (o que lêem, a música que ouvem, as telenovelas a que assistem à refeição, os hábitos de alimentação, e por aí fora). Um dia destes o "índice Cavaco" seria mais um índice a juntar-se aos que medem a temperatura da bolsa de valores: as suas poupanças teriam um valor ajustado dia atrás de dia. Não havia transparência maior: os súbditos saberiam todos os dias o montante do aforro amealhado pelo casal presidencial.


De deslize em deslize, o senhor presidente da república também tem ideias próprias sobre a muito cara transferência de um futebolista lusitano. O pior é que, misturando papéis, Cavaco até confessou não ser "especialista em futebol". Então fala com que conhecimento de causa? Outra interrogação que ficou sobre a minha cabeça: e por acaso as milionárias (ou não) transferências de futebol são competência presidencial? Quem ali falava era Cavaco o economista – apesar da comunicação social que o desafiou, a maldita, a comentar o assunto estar convencida que era sua excelência o presidente da república. Cavaco, o economista keynesiano, desconfia do mercado. Pois o que se passou naquela transferência foi uma transacção que resultou da vontade de quem vendeu e de quem comprou o jogador como mercadoria. Ora se o comprador quis pagar o preço e ele foi aceite pelo vendedor, que raio de moralidade têm políticos pelo mundo fora para aparecerem, no papel de virgens pudicas, a censurar o negócio?


Até me podem dizer que a comparação que vou usar a seguir é despojada de sentido, mas lá vai ela: inquietam-me mais os muitos milhões que vão ser enterrados em mega obras públicas do que com a, no entender de um numeroso coro, obscena transferência de um jogador de futebol. O dinheiro pago pelo clube comprador não vem dos meus impostos. Se não concordar com obras públicas faraónicas e, mesmo assim, dinheiro dos meus impostos seja a elas destinado, que posso eu fazer para além da resignação que nos educam?


Fico à espera que sua excelência comente, com a mesma indignação, o despautério dos megalómanos projectos de investimento que estão a sair do forno. Keynesiano como é, devo esperar sentado.

16.6.09

A maldição da cunha


Duas pancadinhas nas costas, "até és um gajo porreiro, dá lá uma ajudinha". Se por acaso se resiste ao pedido lacrado com o "C" maldito da cunha que pretende facilidades especiais onde elas não existem, o argumento de força: "vá lá, toda a gente faz isto". Subliminar mensagem: os refractários da cunha são as aves raras da fauna em redor.


Às vezes é um pedido ostensivo. Outras vezes chega através de meias palavras – "longe de mim querer um tratamento especial", apresentando o favor através da declaração de que se recusa fazer tal coisa. A quem se negue a entrar no jogo, a proliferação de cunhas importuna. Porque se atravessa pela frente o retrato de uma terra medíocre, habituada a singrar com a ajuda de estratagemas, desvalorizando o mérito de quem não tem o despudor de fazer falar uma cunha e acaba prejudicado na comparação com outro que tenha soerguido a cabeça por ter falado um "favor especial". O "não" como resposta é uma faca que se espeta, funda, nas expectativas de quem está à espera das facilidades especiais. Quem recusar ceder a cunhas é que fica mal no retrato. Por estar desambientado, como se fosse peixe a quem falta um leito de água. É aí que se renova o argumento piedoso: "mas se todos fazem isto…" É a derradeira oportunidade de não ser ave rara – daí a piedade do argumento.


Embirro com as cunhas. Nem sou sensível à retórica da igualdade que, para outros efeitos, pertence ao código genético do discurso politicamente correcto; mas é quando me aparecem cunhas pela frente que sofro um súbito enamoramento pela igualdade. Não da igualdade formatada com o lastro da filosofia política, das ideologias. Uma cunha pede especiais favores que se traduzem num favorecimento pessoal. Desagua numa desigualdade: quem pede o favor quer um tratamento especial aos olhos das regras. Que assim deixam de se aplicar a quem pede a cunha. Isto prejudica os restantes, os que não tiveram a desfaçatez de solicitar o favor especial. A esses, as regras aplicam-se.


Porventura isto soa a moralismo demodé, a uma ingenuidade que não parece condizente com os tempos que vivemos e com a necessidade de os vivermos na pacatez do realismo (que é como quem diz "as coisas são como são, por mais que elas façam doer os olhos; viver em contramão é mais doloroso do que engrossar o caudaloso leito"). Seja. O que inquieta não é saber que gritam mais alto as dores quando arremeto contra a maré. Não tenho a ambição de mudar o que quer que seja. Sigo os instintos. Eles mandam que vire a cara aos favorecimentos pessoais, sobretudo quando obrigam a fechar os olhos a regras de conduta. É por isso que sou anarquista.


Apoquentam as cunhas e não é só pela desigualdade que alimentam. O lado mais sombrio das cunhas é que elas são o pretexto para os incapazes singrarem na vida. Só assim conseguem o que seria impossível de obter através das capacidades ou do esforço. Haver alguém favorecido implica anotar a existência de lesados. Frequentemente, são os que têm mais capacidades, mais mérito, mas ficam para segundo plano por serem ultrapassados pela praga das cunhas. É o retrato desta terra: a negação do mérito. De um passo só se chega a outro traço da idiossincrasia pátria: a mediocridade estabelecida como explicação para o atraso congénito.


Esta é uma doença que se espalha, sem remissão. De tão vulgarizada, contagia-se de pessoa a pessoa. A certa altura, quando os mais capazes percebem que só o exercício da cunha os salva do nada, até eles embarcam no exército de aduladores da cunha que cresce a cada dia que passa. Com um terrível preço a pagar: se o que vale são os favores que se pedem à pessoa certa, se os favorecimentos pessoais e o olvido das regras são a nota dominante, deixam de contar as qualidades individuais. A fasquia desce de nível. Já poucos se esmeram no que fazem. A mediocridade abraça-nos, num abraço apertado e prolongado.

15.6.09

Preto e branco


Ao contrário das convenções. As ruínas perecem, imersas na sua enfermidade. Mesmo quando se demoram e a poeira se acumula, inerte, são efémeras. As tonalidades que dominam: preto e branco, nos seus imensos matizes. O restolho espalha-se por todos os lados. A sujidade tomou conta das ruas. E, contudo, há uma estranha beleza no cenário. Vem dos espelhos que irradiam as coisas no seu contrário.


A lente ofuscada. Cadeiras desmembradas que se arqueiam, desorganizadas. Preenchem a sala onde as paredes perderam a claridade da tinta luminosa. Há um quadro inclinado. Desprendera-se de um dos lados. No outro, um prego já enferrujado mantinha-o num frágil equilíbrio. Os móveis guardam dentro de si a solidão das gavetas despidas. Tudo soa a decadência. A decadência que vem pintada a preto e branco. É a regra dos usos: a angústia desapossa-se das cores garridas. Elas reservadas para a antítese da angústia, para os sentimentos que alentam o sorriso no rosto.


É como se fosse um quadro a retratar a vetusta era pós-industrial. Sinais de uma grandeza que fora conhecida noutro tempo. A nostalgia empalidecia as cores, por mais que a memória se esforçasse por animar as tonalidades do fausto perdido. Sobrava apenas o preto e branco, sinal da melancolia que emoldurava a dissidência do tempo corrente. Era um espartilho doloroso. No torso, as cicatrizes que avivam a decadência de agora. Em contramão com o obstinado resgate da nostálgica elevação de antigamente.


A decadência não é decadente. Nem o preto e branco a ausência de cor. A amargura pelas coisas diferentes, com o sombrio diagnóstico que as encarvoa com a pior das tezes, apenas o cansaço de ter sido recompensado pela glória que o foi no seu tempo. Agora as coisas eram diferentes. As cores foram desmaiando até se cristalizarem no entediante preto e branco. Mas nem entediante seria. Haveria ali, quando muito, a desabituação do presente. Uma insensata impossibilidade de remir o tempo já gasto. E se os olhos em redor distinguiam o que pareciam ruínas, essas eram as ruínas que mereciam sublime sagração. Ao menos havia ruínas. Ao menos, uma decadência a celebrar. E ao menos: a nostalgia, prova de vida dos feitos de antigamente.


O silêncio das ruas desertas rimava com o cenário decadente. Os pássaros não chilreavam. Não se escutava o rumorejo da grande cidade, que parecia em hibernação. Só o vento cortante sussurrava um silvo lancinante, um choro contínuo a debruar a nostalgia que se tornava doentia. Essas lágrimas pintavam a nostalgia com a paleta completa da melancolia. Os olhos só viam a preto e branco, sintoma da maleita que se insinuava há muito tempo.


Era quando o corpo se revoltava contra o torpor que tomava conta. Era quando só faziam sentido as coisas na sua contradição. Era como se tudo se virasse do avesso, sem saber se era pretexto, ou apenas sentido figurado, ou um espontâneo fenómeno. A cabeça repousada na almofada, na letargia que aprisionava o pensamento, erguia-se e arrastava atrás de si o corpo restante. Os olhos deixavam de estar marejados pela tristeza que vinha atrelada à consumição interior fermentada pela decadência. Uma longa golfada de ar inspirada, como se fosse o refrigério que faltava para dobrar o cabo. Já não decadente, a decadência. E uma profusão de cores, a paisagem coberta pelo preto e branco que cessara de ser monótono.


Engrandecia-se a decadência de tudo. Mas nada decaíra. Apenas se consumira pelas paredes gastas que o tempo, voraz, incinera. O erro de sempre é arrastar as memórias na sua intemporalidade. Quando os olhos se soltam do cárcere da nostalgia e apreciam a paisagem em redor, o travo amargo da decadência em preto e branco talvez fosse apenas um delírio. Um contumaz pesadelo, que de pesadelo tinha nada. É que os olhos ficaram presos às teias do encantamento com os prazeres de outrora. Que a esse tempo pertencem, não ao de hoje. Onde há impressão da decadência, afinal apenas um devaneio que corrói as veias por dentro.

12.6.09

Quantas cores vêem uns olhos?


Chegam as cores de um arco-íris? Não. Os olhos deitam-se numa paleta de cores muito mais rica. Reinventam o arco-íris, se necessário for. Até recriam as cores, se formos mais ambiciosos. A certa altura, as cores já não são adquiridas. E já nada é certo. Nem o verde é verde, ou o violeta que se confunde com o azul. As cores que uns olhos vêem são diferentes das cores que outros olhos decantam.


Não interessa se o dia nasceu luminescente. Ou se traz consigo um cobertor de densas nuvens que esconde o dia que podia ser soalheiro. As cores que uns olhos percebem são cores, seja na alvorada que irrompe com os primeiros raios de sol, ou na taciturna escuridão de dias de invernia sem fim. Os olhos sagram as cores que por si se filtram na sua pureza. Nos contrafortes da luz que se insinua entre espelhos vários, são os olhos seus intérpretes. Alimentam-se da luz que os invade, como se as cores fossem seu oxigénio vivificante. Dir-se-ia: os olhos foram criados para serem intrépidos intermediários das cores que nos chegam.


Pois o que seria das cores sem os olhos? Dirão, a cegueira. O mergulho numa escuridão assombrosa, onde nem sequer vultos têm forma. Ou talvez não: as trevas, na sua cor negra, revelam ao menos a negra cor, uma cor. Todavia, não conseguem uns olhos vidrados pela cegueira ungir-se com a policromia que enriquece o mundo. As desgraças, todas as desgraças, alimentam um coro de lamentações. Trazemos a misericórdia pela mão quando pela frente surge uma desgraça pessoal. Não sei se a maior das desgraças é ter uns olhos incapazes de agraciar a textura das cores.


Mas as cores não são um retrato inerte, uma coisa só a todos os olhos que as depuram. Onde uns olhos vêem verde outros sentem azul. Ou a claridade das cores, e a sua espessura, que se alteram quando são exaltadas por olhos diferentes. É quando chegam os tiranetes das convenções. Ensaiam fixar as cores na sua imperturbável rigidez. Nem que por aí espezinhem a liberdade de uns olhos lerem uma tonalidade diferente, ainda que só esses olhos arremetam contra a maré. A minha liberdade sublima-se quando me é dado a saber que há outros olhos que vêem cores diferentes dos meus olhos. Esse é o maior dom: aprender, com os olhos de outros, que as cores que víamos eram apenas uma ofuscada cortina que toldava tonalidades por descobrir.


À ambição soberana de com uns olhos acordados partir em demanda das cores inteiras do mundo: deixemos que a voz dessa ambição se faça ouvir. Há cores nunca depuradas. E o pior é que as cores que chegam através de imagens filtradas por filmes ou fotografias não conseguem captar as cores na dimensão que têm. É preciso que os olhos visitem esses lugares para verem as cores como elas são. Em cada dia que se deita atrás do sol-posto há mais cores que ficaram reservadas ao trono do saber. Cores que se revelaram, mas apenas um aperitivo para as infinitas cores que os olhos têm ainda para travar conhecimento.


Quantas cores vêem uns olhos, pois? O melhor é tirar daí a ideia. Quem consegue contar os números até ao infinito? Não é dever dos olhos catalogarem as cores, como se fossem arquivistas de memórias visuais enquistadas na poeira do tempo. Uns olhos encantam-se com as cores que posam diante de si. Se preciso for, regressam às cores de outrora como se fossem cores ainda virgens. Nem que seja para saberem que as cores se desmultiplicam em números ilusórios.


Mas o que interessa essa contabilidade, se toda a contabilidade é mesquinha? Não há mesquinhez que pertença ao domínio dos sentidos. Nem as cores são contáveis.

11.6.09

A fealdade não incapacita (duas respostas)


A fealdade importuna. Mas o sobressalto – diria, visual – que provoca não é o escantilhão para ajuizar a competência de alguém. Ao assinalar a feiura da D. Gomes só quis fazer isso mesmo: tomar partido, um muito subjectivo partido, pela fealdade da senhora. Não quis prolongar o raciocínio e tirar outras conclusões. É usual a discordância quando a senhora abre a boca, mas ao menos reconheço-lhe um atributo pouco usual na classe política: pensa com a sua cabeça. Talvez a D. Gomes se ponha a jeito. Com ela, nem os líricos que acreditam que a beleza que conta é a reservada no interior de cada um podem ser seus advogados de defesa. Deve ser por causa da proverbial incontinência verbal.


Também quero que fique claro: a fealdade não entra para as contas da interminável, e obtusa, discussão de géneros. Se é permitida a contradição de raciocínio, pois (e agora resvalo para a máscula condição de que venho acusado) como não aprecio a beleza masculina, tenho a proclamar o seguinte: os homens são de uma fealdade atroz. A beleza é monopólio das mulheres. Mas não de todas as mulheres. Seja em pessoas ou em coisas, a feiura é. Limito-me a usar a liberdade opinativa. Correndo o risco de denunciarem a feiura que percorre as minhas entranhas.


O que me causou surpresa foi apenas um excerto daquele texto ter motivado reacções, passando ao lado da sua parte mais sumarenta. É como confundir a árvore com a floresta. Quando assinalei a dívida que a D. Gomes tem com a beleza, quis fazê-lo porque ainda não há muito tempo a senhora escreveu um texto, no blogue que partilha com o cabeça de lista do mesmo partido, zurzindo da líder da oposição por causa da sua fealdade latente nuns cartazes de propaganda política. E não é que a D. Gomes até tinha razão? A líder da oposição também deve muito à beleza. A D. Gomes estava coberta de razão quando argumentava que o cartaz era infeliz por ter escolhido cores que ainda salientavam mais a fealdade da líder da oposição. Mas falava o roto do nu. Não há espelhos em casa da D. Gomes?


Venho ainda acusado de ser um "machista anarca zangado com o mundo". Vamos por partes. Machista não sou. Ou, pelo menos, não me considero tal coisa. A confusão está instalada pois, por vezes, atiro-me às feministas (sobretudo às feministas exacerbadas). Acho que uma coisa não corrobora a outra. Aliás, já por aqui deixei textos que satirizam uma das patéticas idiossincrasias másculas lusitanas: o marialva. Anarca, serei (em rigor: anarquista). Zangado com o mundo? Um bocadinho, e às vezes.


Sugere-se ainda que aquele texto insinuava uma alegria interior com os resultados das eleições para o Parlamento Europeu. Corrijo os termos: primeiro, a alegria interior vinha lá declarada, não se adivinhava do texto. Segundo, acho que não é uma alegria interior, daquelas que são balsâmicas. É mesmo um gosto perverso pelos maus humores de quem foi derrotado. É nestas alturas que dá à costa o pouco aconselhável mau feitio que tem dias.


(Se bem que seja enternecedor, pelo contentamento em que marinavam os vencedores, vê-los na algazarra. Uns, porque nem em sonhos acreditavam na vitória; era vê-los, sobretudo os jotas na retaguarda do cabeça de lista vitorioso, a darem vivas e a soltarem alarves pregões dirigidos ao adversário. A propósito, estava lá um jovem com ar de "nerd" que rivalizava, na fealdade, com a D. Gomes. Outros fizeram uma festa que estava linda, pá, uma fantástica mistura de jovens burgueses bem instalados e gente que parecia saída de um acampamento alter-globalização. E ainda o contentamento reprimido dos que ganham sempre, mas mostravam cara de enterro porque foram ultrapassados pelos inimigos de estimação. Diz-me nada a felicidade dos que ganharam. O que me encheu as medidas foi a tristeza que consumia os derrotados. Porventura esta franqueza cai mal, mas é a franqueza que me vai na alma.)


Para terminar, queria lavrar a discordância total de outro pronunciamento sobre o tal texto: longe, nos antípodas mesmo, de ter algo que se assemelhe a um "perfil impecável". Aliás, no dia em que o tiver, quero me encerrem num manicómio.

10.6.09

Às modas de antanho: a imaginação que se consome na sua finitude


É recorrente: os "designers" de moda recuam no tempo e retomam os modismos que o foram lá atrás. Regressam, cheios de vigor, aos dias correntes. Redescobrem essas modas, actualizam-nas ao sabor do tempo presente. As roupas e cores e cortes de tecidos e calçado que caíram em desuso são resgatados ao armário – dir-se-ia: ao empoeirado armazém – e voltam a cavalgar na crista da onda.


Não sei se não é apenas a criatividade que se esgota. Ou algum revivalismo, recuperando as memórias enquistadas através de uma determinada maneira de vestir. Quando são "criadores" de tenra idade a fazê-lo, não é o revivalismo que explica o mergulho em modismos de antanho. Esses jovens "criadores" de trapos não viveram o tempo que a moda recriada ambiciona reviver. Ou, em tratando-se de "criadores" de meia-idade, o revivalismo é genuíno. Um saudosismo que não homenageia a originalidade que a moda, a moda genuína, exige. O que leva a perguntar se o regresso a modas passadas não é sinal da exaustão da criatividade dos "designers".


Acontece com todos. Pois há escritores, pintores, músicos, realizadores de cinema, encenadores de teatro que atravessam um deserto de ideias e hibernam na produção artística. O que se não vê é retomarem obras já publicadas, dando-lhe nova roupagem só para dizerem que mantêm uma actividade artística. Descontam-se as recriações de obras passadas – música e filme, sobretudo -, pois a transformação dessas obras pode conter um estimável elemento criativo. Não é o que se passa com o autêntico deserto de ideias que percorre a moda que mergulha nos modismos de outrora. Quando regressam às calças à boca-de-sino, ou às camisas garridas (só faltam as golas protuberantes), ou às gravatas que parecem um fino filete a tombar sobre as camisas, e explicam que recriam um moda que já conhecemos lá atrás, trata-se de uma patranha. Não há reinvenção alguma. O que há é uma intelectualmente desonesta pesquisa nos arquivos, só para copiar o que foi moda outrora e extinguir o incêndio que os consome – o fogo que incinerou a criatividade.


Também se pode olhar para o resgate de modas passadas como a implacável tendência para o conservadorismo. Os "designers" gostam de se colocar entre as vanguardas. Julgam-se três passos à frente da maralha. De cada vez que afocinham em modas supostamente recriadas, são reféns do conservadorismo. Afinal a moda não muda tanto como os aduladores do género apregoam. A moda anda em círculos. Quando liberta âncora de um porto para anos mais tarde aportar no local de partida, é a moda anestesiada pelo conservadorismo. E as pessoas parecem gostar. Das modas que regressam à casa da partida. Porque, lá no fundo, são conservadoras. De cada vez que são convidadas a aceitar uma falaciosa recriação de uma moda de antanho que não deixa de ser uma repetição fidedigna, mostram repugnância pela mudança, o que as coloca na senda do conservadorismo.


Não sei se somos viciados no tempo passado. Senão, de vez em quando, não nos enclausuramos no tempo que experimentámos e que sabemos só poder ser revivido na artificialidade de quem julga poder fazer recuar todas as páginas do calendário. Porventura os "criadores" de moda têm a mesma têmpera. O que afinal desmente o tão elevado lugar em que se colocam. Pois se pertencem a uma vanguarda qualquer, essa vanguarda é o lugar a que todos pertencemos.


Talvez fosse mais honesto se os "criadores" de moda admitissem, quando resvalam para as modas passadas, que foram atacados por uma crise de criatividade. Um banho de humildade é mais prestigiante do que ocultar fraquezas através de pretextos que apenas expõem a desonestidade intelectual. Mas o melhor seria que se pautassem por um código de conduta que os impedisse de apresentar modas que revisitam, sem tirar nem pôr, modas de antanho. Ao menos poupavam-nos certas agressões visuais.

9.6.09

O povo é burro (imagens dos derrotados nas eleições)



Há um gosto perverso quando o contentamento se destila ao ver os rostos tristes de quem perdeu eleições. Que me interessam os ganhadores? Pouco. A não ser sabê-los esfuziantes com a vitória. Bom proveito.

Entre a gente nitidamente mal disposta houve alguém que captou a minha atenção: Ana Gomes, que apareceu duas vezes com cara de pouco amigos. E como ela estava com maus fígados! Já não me metia com a ponta de lança do MRPP dentro do PS há muito tempo. À entrada do hotel onde a seita se reuniu, foi logo debitando moralismos sobre a abstenção muito elevada. Ainda não havia resultados, nem sequer projecções anunciadas pelos canais de televisão. Porventura alguém do aparelho já tinha segredado à D. Gomes que a coisa ia correr mal para a seita. Era bom que se começassem a preparar para uma derrota retumbante. Duplamente retumbante, pois os astrólogos das sondagens jamais a tinham previsto nas sucessivas sondagens que iam vomitando. As derrotas, quando são inesperadas, custam mais a digerir.


Comecei a suspeitar de um resultado surpreendente quando olhei para o rosto carregado da D. Gomes e para a maneira como se atirou aos abstencionistas – esses malvados, indignos dos sacrifícios por que passaram os paladinos da liberdade que, em alguns casos, pagaram com a vida a luta pela liberdade. Sabemos que a D. Gomes sofre de incontinência verbal. E sabemos que deve andar a contas com uma tremenda azia, porque há poucos dias o ministério público arquivou o caso dos voos clandestinos dos serviços secretos dos Estados Unidos que fizeram escala técnica em aeroportos domésticos a caminho da tortura de Guantánamo. Temos que compreender a decepção de alguém quando uma cruzada pessoal se salda pelo insucesso. Descontando isso, havia ali naquelas palavras dirigidas aos abstencionistas um ódio mal disfarçado, o sinal de que eles seriam os culpados por algo de mal que estava para acontecer ao PS. A noite eleitoral prometia-se entusiasmante.


Segundo episódio: a D. Gomes estava com umas trombas que metiam medo quando o desastrado cabeça de lista, na companhia do "grande líder", fez o discurso que selava a derrota. Foram uns segundos, uns segundos só, mas tão deliciosos, quando uma câmara fez um grande plano da D. Gomes. É do conhecimento geral, a senhora não deve nada à beleza. Menos agora que, como ela confessou num inquérito que o Público passou entre eurodeputados, engordou dez quilos na vida airada entre Bruxelas, Estrasburgo e muitas viagens mundo fora em representação do Parlamento Europeu. Toda aquela feiura se adensa quando o rosto se encerra numa carrancuda forma.


Pus-me a adivinhar os pensamentos que percorriam o íntimo da D. Gomes. Como ela diria, para os seus botões: que ignaro é este povo! Ó gente desprovida de inteligência, que não soubeste premiar uma lista de excepcional calibre e a puniste por andares cansada do governo do "grande líder". Se calhar – avançou a hipótese, numa humilde auto-culpa – os candidatos da lista falharam durante a campanha eleitoral. Em vez de andarem entretidos na lavagem de roupa suja da política caseira, deviam ter falado da Europa. E explicado aos eleitores, em tom pedagógico (até tinham matéria-prima de primeira água: pois o cabeça de lista não é um eminente professor universitário, e logo da digníssima escola coimbrã?), que estas eleições não eram um plebiscito ao governo nem ao "grande líder". Arrisco a adivinhar outro pensamento que terá vogado no espírito da D. Gomes: ela a olhar para o "grande líder" no púlpito, a partilhar a sua também tromba de mal disposto, e a acusá-lo de ser o culpado pelo descalabro nestas eleições. Nem sei se a D. Gomes, que reúne os predicados de uma vingativa alma, não terá ali mesmo prometido um vudu ao "grande líder". Que as eleições legislativas demoram só três meses.


A D. Gomes estava com cara de poucos amigos. Se pudesse, dava uma lição ao povo. Mas só ao que não quis ir votar e ao que escolheu os adversários que, como ela tem a certeza e todos devíamos saber, não chegam aos calcanhares da seita socialista. Isto das eleições é um aborrecimento. Só devia haver eleições se o PS ganhasse. Aí sim, festarola noite dentro e um sorriso de orelha a orelha em vez do carrancudo rosto a que tivemos direito por uns breves, mas tão deliciosos, segundos.


(Em Coimbra)

8.6.09

E se depois… (um segredo à consciência do abstencionista – momentaneamente – arrependido)


(Escrito de véspera, à frente da televisão, a ver as tristes figuras no "rescaldo" das eleições)


Um segredo te conto, ó consciência envergonhada: tens menos razão para o enxovalho quando te apontam o dedo por o teu amo teimar em ser abstencionista. Ele foi votar. E logo nas eleições em que menos gente vota. Está feito. Um feito.


Confesso, ó consciência, tu conseguiste saltar as barreiras que o teu amo erguia e que o impediam de entrar numa mesa de voto. O obstáculo final só foi removido no dia das eleições. Conseguiste despertar no teu amo uma interrogação: e se fosses votar? Não por imperativo de participação, ou por dever cívico, ou por qualquer outro motivo que vem de fora e se impõe sobre ti, ó consciência. Perguntaste ao lado racional, que raras vezes consegues domar: se o teu amo ensina na universidade o que é a União Europeia, se insiste, vezes sem conta, que as decisões da União Europeia contam mais do que as decisões tomadas nos ministérios em Lisboa, e se explica que o Parlamento Europeu tem vindo a ganhar poder ao longo do tempo, como se podia demitir de participar logo nas eleições para o Parlamento Europeu?


Soubeste, consciência, fermentar o predicado de que o teu amo se orgulha (há quem o considere um desagradável defeito): a vocação provocatória, o gosto perverso de deixar vir à tona o espírito de contradição. Puxaste lustro à memória a seguir a outra interrogação: quando foi a última vez que o teu amo pegou num boletim de voto? Faz dez anos, nos referendos sobre o aborto (primeira edição) e a regionalização. Conseguiste, ó consciência, incensar a luz no teu amo: ele gosta de ir depositar o voto em eleições desvalorizadas pela multidão. Cá está: ao contrário da maré dominante.


Continuas, consciência, sem conseguir que o teu amo se despoje de um terrível individualismo metódico, contudo. Fizeste bem o teu trabalho, ainda assim. Já foi um passo de gigante teres levado aquele corpo teimoso até à mesa de voto. Os progressos são dignos de registo, não se fosse dar o caso dele ter pegado no boletim de voto e, só para te apaziguar, o entregasse dobrado em quatro sem gastar a tinta da caneta a colocar uma cruz num dos concorrentes. Não foi esse o caso. O boletim foi devolvido com uma cruzinha.


Mantém-se a acusação: o individualismo que às vezes outros confundem com egoísmo. Pois deu-se o caso de guiares o teu amo até àquela escola onde toda a freguesia votava, mas o teu amo ficou convencido que a mudança de comportamento – o intervalo no militante abstencionismo – só obedeceu a razões do foro íntimo. Continua surdo aos apelos que chegam de fora. Da sociedade que grita, em coro, o dever de voto e ensaia sobre a fantasiosa falta de legitimidade dos que se abstêm (quem não vota, faz-se constar, não pode criticar). Alguns diriam, em tom de lamentação: só foi votar por capricho. E se assim foi, ó consciência, não conseguiste derrotar o egoísmo, ou – se fores condescendente – a insensibilidade de tamanho paquidérmico.


Já lhe perguntaste, ó consciência, se foi um acto custoso? Assim como assim, nem havia filas de espera, nem sequer o teu amo foi incomodado pelos escrutinadores à boca da urna ao serviço de uma estação de televisão. E mais lhe perguntaste se este foi um acto isolado, se vai perder a teimosia do orgulhoso abstencionista?

5.6.09

Às vezes, um sequestro não é um crime


Depende. Se forem trabalhadores de uma empresa que está à beira da falência, ou de uma empresa que por causa da crise teve que despedir muitos trabalhadores, está-se a convencionar que os trabalhadores podem sitiar os patrões dentro das instalações da empresa. Sem que este sequestro possa ser considerado crime.


Por cá, algumas esquerdas mais radicais andam entusiasmadas com a ideia. Pelos jornais transpiram peças, de jornalistas empenhados numa militância política activa que lhes retira objectividade jornalística, que descrevem com embevecimento o que se passa em França. Eu fico um pouco confuso com esta subjectividade na aplicação das leis. Não sei se das esquerdas radicais me é permitido o seguinte diagnóstico sem apanhar com os habituais rótulos de "fascista" ou, o que por estes dias é ainda pior, "neo-liberal": isto cheira-me a arbitrariedade.


É verdade que as leis laborais consagram um tratamento de favor para o trabalhador, pois o trabalhador é a "parte mais fraca" e as leis devem estar ao lado dos desvalidos. Todavia, admitir que os trabalhadores podem aprisionar os patrões dentro da empresa sem que os tribunais julguem o acto como crime, abre um precedente muito perigoso. Qualquer dia, o homicídio de patrões será justificável. Haverá assassinos a passear no meio de nós, todos ufanos porque fizeram justiça revolucionária. Por este andar, haveremos de ver as leis mudadas só para contemplar a impunidade dos trabalhadores.


A extrema-esquerda chique ensina a nova moralidade. Vai a reboque da crise, atirando-se ao nefando capitalismo, à globalização sem rosto humano e, como não podia deixar de ser, ao "neo-liberalismo" (que ainda não vi satisfatoriamente definido) para açambarcar a nova moralidade reinante. E ai de quem conteste os pregões carregados da moral acertada, que logo leva com o rótulo de "imoral". O mundo dá muitas, e curiosas, cambalhotas. Quem diria? Os que sempre defenderam o relativismo moral, hoje tão senhores das suas certezas (as certezas muito convenientes para o catecismo ideológico que apregoam), ungindo o mundo com uma moralidade. Uma moralidade que, para todos os efeitos, é a negação do relativismo moral por onde sempre andaram. Quem disse que nunca estamos a tempo de mudar de ideias?


Lamento que eu a extrema-esquerda caviar já não tenhamos a única coisa que tínhamos em comum. Dantes, ao menos coincidíamos na defesa do relativismo. Agora já não estou acompanhado por eles. Sobra-me uma reconfortante sensação. É que sempre me afastei de moralistas e dos moralismos por eles professados. Quando vejo o fradesco líder da facção perorar, com aquele ar beato, vomitando as verdades absolutas que ninguém devia ter a ousadia de contestar, tenho um prazer indescritível para me situar nos antípodas daquela moral que é tão indeclinável como enjoativa. O prazer irrenunciável de palmilhar os caminhos, pecaminosos caminhos, da imoralidade.


Talvez sejam as reminiscências da formação jurídica (que renego, mas que está enraizada). As reminiscências que afloram à superfície e relembram que as leis são "gerais e abstractas". Decifrando: que são aplicadas da mesma maneira a toda a gente, sem fazer distinções entre a gente a que se aplicam. Era o que mais faltava que aos trabalhadores fossem admitidos crimes que não lhes são tolerados se forem praticados pelas mesmas pessoas que, num certo momento, não actuam como trabalhadores. Não sei se à extrema-esquerda caviar passa pela cabeça criminalizar a existência de empresas e de empresários. Tudo se resolvia. Não havia gananciosos empresários sem sensibilidade pelos trabalhadores ao seu serviço. Só não explicam como, na ausência dos abastados empresários, se conseguia cobrar os impostos necessários para manter as regalias de toda a populaça.


Lamento, ó gente da extrema-esquerda, mas o mundo não é uma peça de teatro de Bertolt Brecht.

4.6.09

Punhos de renda


Há ali uma espessura aristocrática que não engana. Parecem levitar. Os demais, os que pedem meças aos pergaminhos, arrastam as enormes patorras pelo chão. Como arrastam os maus modos. Arrotam alarvidades. Às refeições, inclinam os cotovelos sobre a mesa. Cultivam as formas populares de cultura, um pavoroso hino à anti-estética. Não conhecem a sublime beleza da música clássica, nunca quiseram assistir a uma ópera, não frequentam as galerias de arte. A aristocrática nata coincide, nos salões de arte, com uma elite radical que vive nos seus antípodas. Toleram-se pelo amor à arte.


As senhoras e senhores de punhos de renda acham tudo aquilo abjecto. (E aí também sou convergente com eles.) A sua muito delicada educação é um rosário de bons modos. São os penhores da "etiqueta". Trazem consigo um manual de "savoir être" – assim, em francês, que nobilita. Dir-se-ia tratar-se de uma gente imaculadamente perfeita. Todos os gestos muito bem pensados, abrindo mentalmente o manual de boas maneiras na página correspondente para não trair os pergaminhos e não ofender os membros da confraria.


Camisas milimetricamente engomadas; nem quando se fazem transportar de automóvel as roupas mostram uma ruga que seja, como se tivessem milagres ao alcance dos seus dedos ungidos por um perfume divino. Nem um cabelo fora do sítio em penteados que parecem esculturas moldadas por artistas plásticos, não por cabeleireiros. E a etiqueta, ah, a etiqueta! Lídimos exemplares dos holofotes que se deitam sobre a aparência, sem cuidarem de olhar além da fina camada exterior que oculta a verdadeira espessura. A espessura que se esconde detrás do verniz pacientemente encenado ao som do manual da etiqueta. É uma existência asséptica.


Ocasionalmente, os aduladores do género sofrem desilusões. Não lhes interessa escutar os que avisaram que além da fina camada de verniz é a frivolidade que povoa a aristocracia de punhos de renda. O pior é quando se descobrem privados vícios que desmentem o verniz para inglês ver. A existência só era asséptica, e cheia de virtudes, para os holofotes. Descem então do altar inacessível onde se fizeram erguer. Ao nível da ralé que os horroriza. Mas nem então são da ralé.


O mundo dos punhos de renda é um mundo faz-de-conta. A perpetuação de um conto de fadas que enfeitiça seguidores e aspirantes, um numeroso exército de arrivistas sociais que inveja o estatuto. Uma assombração para os líricos da igualdade, desmentindo os modelos que ambicionam. Pois a nobreza (como estalão social) tem o seu prolongamento na vestimenta reinventada à maneira dos tempos modernos. Um anacronismo, no fim de contas. Fazem gala dos pergaminhos, como se houvesse ali o divino reconhecimento de um estatuto invejável. Pelos punhos de renda sai a assinatura que os cauciona como bússolas que norteiam as massas. Podem as massas insistir, na sua tremenda ignorância, ou apenas numa inocente teimosia, em renegar os ensinamentos gratuitos da nata aristocrática. Um mal que chega por bem: mantém os privilégios numa casta restrita.


Adoro vê-los repugnados com comportamentos detestáveis, os comportamentos que são a antítese do manual de boas maneiras que os aristocratas trazem sempre consigo. Acenam a cabeça em tom reprovador. Não conseguem esconder um esgar de náusea. Alguns simplesmente olham para o lado, horrorizados com o ultraje. Os mais espontâneos proferem comentário censurador. Como se fossem educadores – e, afinal, fazem-no numa pedagógica veia, gratuita.


É quando os vejo, repugnados pela ralé que resvala para os antípodas do "saber estar", que apetece engrossar a maré onde campeia a ralé contumaz. Só para ver crescer a onda da "reprovação social", essa coisa tão importante e que move todas as montanhas (acreditam os aristocratas, empenhados na sua imensa vacuidade).


Às vezes apetece pegar nos punhos de renda e massajá-los na lama. Para os incensar.