Não será melhor
Não fazer nada?
Deixar tudo ir de escantilhão pela vida abaixo
Para um naufrágio sem água
Álvaro de Campos, PoesiaEra um tremendo cansaço. As rotinas que retiravam sabor à existência. À boca só vinha um sabor amargo, as muitas decepções a esmagarem-se contra o peito. O dolorido peito. O regaço para os sobressaltos que se repetiam com sofreguidão. A certa altura começava a desconfiar que não havia palavras belas, ou que os dias podiam nascer soalheiros. A certa altura, habituara-se ao céu plúmbeo, que parecia ser o espelho da tonalidade que cobrira a existência.
Esforçara-se. Ao menos convencia-se que sim. Esforçara-se por dar luminescência. Dia atrás de dia fora o arquitecto que irrompia numa imaginária escadaria céu acima. Na mão levava uma vassoura para varrer as densas nuvens que teimavam em aspergir as gotas de melancolia. Quando descia, vinha tingido da fuligem das nuvens e o céu continuava encoberto. As forças, exangues de tanto tentar. Com o passar dos dias, os simples actos da vida amontoavam-se num santuário de torturas. Acordar era um suplício, vestir-se era um suplício, respirar era um suplício.
Sentia-se aprisionado numa coreografia de que não fazia parte. Um dançarino a esboçar os passos forçados numa dança equivocada. O tempo e o local pareciam a descompasso. Não eram seus. O próprio corpo era um corpo estranho. Era como se as pernas não pertencessem ao mesmo tronco que trazia uns braços também estranhos. Todos os dias, os habituais locais pareciam desconhecidos sítios que os pés pisavam pela primeira vez. De resto, já nem as memórias soavam a nada. Só não entendia se o esquecimento de tudo e de si era um brutal esforço para perceber que teria sido melhor ser outra pessoa. O esquecimento atilado num refúgio de si.
O corpo já disforme envergando os andrajos que o descuido de tudo cultivara. Era o ninho da loucura que tomara conta das veias, envenenando o sangue com uma seiva que o corroía pelas entranhas. E teimava na lucidez de quem se julga penhor dos sentidos; era lá fora, em todos os outros com quem se cruzava, que a demência amesendava. E mesmo assim procurava, com sofreguidão, o mundo lá fora como santuário onde embalsamava a insanidade dos outros. Ria-se. Sonoras gargalhadas que incomodavam os transeuntes. Ria-se na direcção das caras que vinham em sua direcção. Ora rostos imperturbáveis – a habitual indiferença da cidade que cultivava os gélidos sentimentos –, ora uma reprovação que se misturava com complacência. Era o estertor que o conduzia pela mão.
Nas águas perturbadas que eram seu ninho de demência, às vezes conseguia erguer a cabeça e espreitar o curso do mundo. Havia fendas que deixavam ver as cores claras que irrompiam conta a escuridão que tinha tomado conta de tudo. Instantes, breves instantes, em que a demência contracenava com uma teimosa, relapsa lucidez. Então as dores avivavam-se, insuportáveis. O maior dos males é quando diante da encruzilhada não há roteiro que forneça resposta para a saída. Sobra um turbilhão que empurra o corpo para um interminável precipício. A vida transforma-se: parece apenas a queda interminável ao longo do precipício. A vida errante transformara-se, tortuosa, num planalto onde soprava um vento agreste, um vento que anunciava a resignação de tudo. Tudo era apenas as ruínas do que fora outrora.
3 comentários:
Deixo como sugestão de leitura, "O Papalagui", da Antígona. Nada que não saibamos já. Mas, se interiorizada, a sua leitura é uma revelação.
MLV
Achei-te pela minha querida miss (letraseflores.wordpress.com) e me vi achado por esse texto!
obrigado!
Sumiste lá de casa...
a miss reclama tua ausência ...
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