16.6.09

A maldição da cunha


Duas pancadinhas nas costas, "até és um gajo porreiro, dá lá uma ajudinha". Se por acaso se resiste ao pedido lacrado com o "C" maldito da cunha que pretende facilidades especiais onde elas não existem, o argumento de força: "vá lá, toda a gente faz isto". Subliminar mensagem: os refractários da cunha são as aves raras da fauna em redor.


Às vezes é um pedido ostensivo. Outras vezes chega através de meias palavras – "longe de mim querer um tratamento especial", apresentando o favor através da declaração de que se recusa fazer tal coisa. A quem se negue a entrar no jogo, a proliferação de cunhas importuna. Porque se atravessa pela frente o retrato de uma terra medíocre, habituada a singrar com a ajuda de estratagemas, desvalorizando o mérito de quem não tem o despudor de fazer falar uma cunha e acaba prejudicado na comparação com outro que tenha soerguido a cabeça por ter falado um "favor especial". O "não" como resposta é uma faca que se espeta, funda, nas expectativas de quem está à espera das facilidades especiais. Quem recusar ceder a cunhas é que fica mal no retrato. Por estar desambientado, como se fosse peixe a quem falta um leito de água. É aí que se renova o argumento piedoso: "mas se todos fazem isto…" É a derradeira oportunidade de não ser ave rara – daí a piedade do argumento.


Embirro com as cunhas. Nem sou sensível à retórica da igualdade que, para outros efeitos, pertence ao código genético do discurso politicamente correcto; mas é quando me aparecem cunhas pela frente que sofro um súbito enamoramento pela igualdade. Não da igualdade formatada com o lastro da filosofia política, das ideologias. Uma cunha pede especiais favores que se traduzem num favorecimento pessoal. Desagua numa desigualdade: quem pede o favor quer um tratamento especial aos olhos das regras. Que assim deixam de se aplicar a quem pede a cunha. Isto prejudica os restantes, os que não tiveram a desfaçatez de solicitar o favor especial. A esses, as regras aplicam-se.


Porventura isto soa a moralismo demodé, a uma ingenuidade que não parece condizente com os tempos que vivemos e com a necessidade de os vivermos na pacatez do realismo (que é como quem diz "as coisas são como são, por mais que elas façam doer os olhos; viver em contramão é mais doloroso do que engrossar o caudaloso leito"). Seja. O que inquieta não é saber que gritam mais alto as dores quando arremeto contra a maré. Não tenho a ambição de mudar o que quer que seja. Sigo os instintos. Eles mandam que vire a cara aos favorecimentos pessoais, sobretudo quando obrigam a fechar os olhos a regras de conduta. É por isso que sou anarquista.


Apoquentam as cunhas e não é só pela desigualdade que alimentam. O lado mais sombrio das cunhas é que elas são o pretexto para os incapazes singrarem na vida. Só assim conseguem o que seria impossível de obter através das capacidades ou do esforço. Haver alguém favorecido implica anotar a existência de lesados. Frequentemente, são os que têm mais capacidades, mais mérito, mas ficam para segundo plano por serem ultrapassados pela praga das cunhas. É o retrato desta terra: a negação do mérito. De um passo só se chega a outro traço da idiossincrasia pátria: a mediocridade estabelecida como explicação para o atraso congénito.


Esta é uma doença que se espalha, sem remissão. De tão vulgarizada, contagia-se de pessoa a pessoa. A certa altura, quando os mais capazes percebem que só o exercício da cunha os salva do nada, até eles embarcam no exército de aduladores da cunha que cresce a cada dia que passa. Com um terrível preço a pagar: se o que vale são os favores que se pedem à pessoa certa, se os favorecimentos pessoais e o olvido das regras são a nota dominante, deixam de contar as qualidades individuais. A fasquia desce de nível. Já poucos se esmeram no que fazem. A mediocridade abraça-nos, num abraço apertado e prolongado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Mas há ainda quem resista.
MLV