Ao contrário das convenções. As ruínas perecem, imersas na sua enfermidade. Mesmo quando se demoram e a poeira se acumula, inerte, são efémeras. As tonalidades que dominam: preto e branco, nos seus imensos matizes. O restolho espalha-se por todos os lados. A sujidade tomou conta das ruas. E, contudo, há uma estranha beleza no cenário. Vem dos espelhos que irradiam as coisas no seu contrário.
A lente ofuscada. Cadeiras desmembradas que se arqueiam, desorganizadas. Preenchem a sala onde as paredes perderam a claridade da tinta luminosa. Há um quadro inclinado. Desprendera-se de um dos lados. No outro, um prego já enferrujado mantinha-o num frágil equilíbrio. Os móveis guardam dentro de si a solidão das gavetas despidas. Tudo soa a decadência. A decadência que vem pintada a preto e branco. É a regra dos usos: a angústia desapossa-se das cores garridas. Elas reservadas para a antítese da angústia, para os sentimentos que alentam o sorriso no rosto.
É como se fosse um quadro a retratar a vetusta era pós-industrial. Sinais de uma grandeza que fora conhecida noutro tempo. A nostalgia empalidecia as cores, por mais que a memória se esforçasse por animar as tonalidades do fausto perdido. Sobrava apenas o preto e branco, sinal da melancolia que emoldurava a dissidência do tempo corrente. Era um espartilho doloroso. No torso, as cicatrizes que avivam a decadência de agora. Em contramão com o obstinado resgate da nostálgica elevação de antigamente.
A decadência não é decadente. Nem o preto e branco a ausência de cor. A amargura pelas coisas diferentes, com o sombrio diagnóstico que as encarvoa com a pior das tezes, apenas o cansaço de ter sido recompensado pela glória que o foi no seu tempo. Agora as coisas eram diferentes. As cores foram desmaiando até se cristalizarem no entediante preto e branco. Mas nem entediante seria. Haveria ali, quando muito, a desabituação do presente. Uma insensata impossibilidade de remir o tempo já gasto. E se os olhos em redor distinguiam o que pareciam ruínas, essas eram as ruínas que mereciam sublime sagração. Ao menos havia ruínas. Ao menos, uma decadência a celebrar. E ao menos: a nostalgia, prova de vida dos feitos de antigamente.
O silêncio das ruas desertas rimava com o cenário decadente. Os pássaros não chilreavam. Não se escutava o rumorejo da grande cidade, que parecia em hibernação. Só o vento cortante sussurrava um silvo lancinante, um choro contínuo a debruar a nostalgia que se tornava doentia. Essas lágrimas pintavam a nostalgia com a paleta completa da melancolia. Os olhos só viam a preto e branco, sintoma da maleita que se insinuava há muito tempo.
Era quando o corpo se revoltava contra o torpor que tomava conta. Era quando só faziam sentido as coisas na sua contradição. Era como se tudo se virasse do avesso, sem saber se era pretexto, ou apenas sentido figurado, ou um espontâneo fenómeno. A cabeça repousada na almofada, na letargia que aprisionava o pensamento, erguia-se e arrastava atrás de si o corpo restante. Os olhos deixavam de estar marejados pela tristeza que vinha atrelada à consumição interior fermentada pela decadência. Uma longa golfada de ar inspirada, como se fosse o refrigério que faltava para dobrar o cabo. Já não decadente, a decadência. E uma profusão de cores, a paisagem coberta pelo preto e branco que cessara de ser monótono.
Engrandecia-se a decadência de tudo. Mas nada decaíra. Apenas se consumira pelas paredes gastas que o tempo, voraz, incinera. O erro de sempre é arrastar as memórias na sua intemporalidade. Quando os olhos se soltam do cárcere da nostalgia e apreciam a paisagem em redor, o travo amargo da decadência em preto e branco talvez fosse apenas um delírio. Um contumaz pesadelo, que de pesadelo tinha nada. É que os olhos ficaram presos às teias do encantamento com os prazeres de outrora. Que a esse tempo pertencem, não ao de hoje. Onde há impressão da decadência, afinal apenas um devaneio que corrói as veias por dentro.
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