(Escrito de véspera, à frente da televisão, a ver as tristes figuras no "rescaldo" das eleições)
Um segredo te conto, ó consciência envergonhada: tens menos razão para o enxovalho quando te apontam o dedo por o teu amo teimar em ser abstencionista. Ele foi votar. E logo nas eleições em que menos gente vota. Está feito. Um feito.
Confesso, ó consciência, tu conseguiste saltar as barreiras que o teu amo erguia e que o impediam de entrar numa mesa de voto. O obstáculo final só foi removido no dia das eleições. Conseguiste despertar no teu amo uma interrogação: e se fosses votar? Não por imperativo de participação, ou por dever cívico, ou por qualquer outro motivo que vem de fora e se impõe sobre ti, ó consciência. Perguntaste ao lado racional, que raras vezes consegues domar: se o teu amo ensina na universidade o que é a União Europeia, se insiste, vezes sem conta, que as decisões da União Europeia contam mais do que as decisões tomadas nos ministérios em Lisboa, e se explica que o Parlamento Europeu tem vindo a ganhar poder ao longo do tempo, como se podia demitir de participar logo nas eleições para o Parlamento Europeu?
Soubeste, consciência, fermentar o predicado de que o teu amo se orgulha (há quem o considere um desagradável defeito): a vocação provocatória, o gosto perverso de deixar vir à tona o espírito de contradição. Puxaste lustro à memória a seguir a outra interrogação: quando foi a última vez que o teu amo pegou num boletim de voto? Faz dez anos, nos referendos sobre o aborto (primeira edição) e a regionalização. Conseguiste, ó consciência, incensar a luz no teu amo: ele gosta de ir depositar o voto em eleições desvalorizadas pela multidão. Cá está: ao contrário da maré dominante.
Continuas, consciência, sem conseguir que o teu amo se despoje de um terrível individualismo metódico, contudo. Fizeste bem o teu trabalho, ainda assim. Já foi um passo de gigante teres levado aquele corpo teimoso até à mesa de voto. Os progressos são dignos de registo, não se fosse dar o caso dele ter pegado no boletim de voto e, só para te apaziguar, o entregasse dobrado em quatro sem gastar a tinta da caneta a colocar uma cruz num dos concorrentes. Não foi esse o caso. O boletim foi devolvido com uma cruzinha.
Mantém-se a acusação: o individualismo que às vezes outros confundem com egoísmo. Pois deu-se o caso de guiares o teu amo até àquela escola onde toda a freguesia votava, mas o teu amo ficou convencido que a mudança de comportamento – o intervalo no militante abstencionismo – só obedeceu a razões do foro íntimo. Continua surdo aos apelos que chegam de fora. Da sociedade que grita, em coro, o dever de voto e ensaia sobre a fantasiosa falta de legitimidade dos que se abstêm (quem não vota, faz-se constar, não pode criticar). Alguns diriam, em tom de lamentação: só foi votar por capricho. E se assim foi, ó consciência, não conseguiste derrotar o egoísmo, ou – se fores condescendente – a insensibilidade de tamanho paquidérmico.
Já lhe perguntaste, ó consciência, se foi um acto custoso? Assim como assim, nem havia filas de espera, nem sequer o teu amo foi incomodado pelos escrutinadores à boca da urna ao serviço de uma estação de televisão. E mais lhe perguntaste se este foi um acto isolado, se vai perder a teimosia do orgulhoso abstencionista?
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