22.6.09

A vida é simples. E essa é uma coisa complicada


Sabes: às vezes não é preciso escalar as serranias escarpadas que se amontoam diante dos olhos. Nem é preciso inventar as palavras embotadas, como se elas fossem um lampejo de originalidade, para confessar estados de alma. As dores que nos consomem, quantas vezes as inventamos? Parece que grita, ensurdecedor, o cansaço das coisas na sua simplicidade.


É então que entra o trovão da complexidade. Dirias: a inteligência, ou apenas o mero pensamento, renegam a simplicidade. Porventura confundem-na com simplismo – essa terrível maleita onde campeiam os lugares-comuns, a lhaneza da existência na sua imoderada mesquinhez. Atraiçoa, o pensamento: atraiçoa-se pelas aparências da simplicidade. Não percebe que a simplicidade é a agradável planície onde o corpo não se cansa, onde todas as flores se passeiam em redor, perfumando a existência com um sentido que não seja uma condoída peregrinação que sangra por dentro.


O refúgio nas complexas coisas é a tirania dos paradoxos. Sabe-se o que é de evitar e, todavia, os passos transviam-se pelos caminhos que se encontram com o aroma da complexidade. É como se, diante de uma encruzilhada, rematasses pela estrada que sabes ser sinuosa, com uma tremenda inclinação para acidentes, a pedregosa estrada que ensanguenta os pés. Será a adrenalina a irromper, sufocando a pacatez que aconselhava a empreender pela estrada plana e larga, sem curvas traiçoeiras? Talvez o paradoxo não seja irracionalidade. Talvez a demissão das coisas simples. Por suspeitares que elas não apimentam a existência.


A acidentada estrada por onde arremetes é sobressalto constante. Não há um dia sem dissabores. Não há um dia que passe sem que a angústia te faça arder as veias. Às vezes, sentes que as entranhas se derretem na viscosidade que expeles, no azedume que destilas diante das dores do mundo que são tua consumição. Como podes fechar os olhos às insídias do mundo? Farias melhor se fechasses os olhos num simulacro do que te cerca; serias um oásis, ou um arquipélago inacessível ao cavernoso mundo, mas uma vilania a ti mesmo. Apenas uma fuga, covarde como são todos os refúgios que se escondem num manto de simplicidade.


O pior de tudo é que o entorno se contagia, deixa-te perturbado e sem reflexos para aplacar as dores que te deixam mortiço. Muitas vezes pareces ceder, resignado, sem força nem vontade para resistir ao caudaloso leito que desgasta o corpo. Reparas na erosão, como nas praias a notas nas rochas arredondadas pelo alisamento feito pelas furiosas ondas do mar. Gostavas que as coisas fossem o seu contrário. Que a simplicidade derrotasse a impenitente complexidade que verte as perenes dores que já nem são dores de tanto doerem.


O labirinto tem as paredes encardidas pela humidade bolorenta. Parecem camadas sucessivas de labirintos sobrepostos, um que não tem fim e logo outro a insinuar-se no seu estorvo. E, no entanto, o enamoramento por estes labirínticos corredores é que te parece animar. Já experimentaste a monotonia das coisas simples. Temeste que a indigência tomasse conta. Temeste que a anestesia dos sentidos fosse o muito elevado preço a pagar por uma reputação de quem torneia as contrariedades, como se torneá-las fosse a solução para os enigmas que te supliciam.


Não é o longo bocejo que preferes. Uma existência agitada, atribulada até, compensa a prostração da enganadora simplicidade das coisas. Sabemos que a vida é uma coisa simples, se quisermos. Só não temos a certeza se declinamos os desafios que surgem pela frente. Não sabemos se nos demitimos de nós mesmos. Esse é o desafio mais complexo que temos, todos os dias. Dizeres que a simplicidade da vida é atraiçoada pelo alçapão da complexidade é um tremendo lugar-comum, um espartilho à grandeza do ser.


A simplicidade é o ensimesmamento a que nos reduzimos quando teimamos em ser inacessível arquipélago.

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