2.6.09

O voto obrigatório. Outra vez


Costuma acontecer em véspera de eleições. O odor a forte abstenção paira no ar. Saltam, ofendidas, as pitonisas da democracia. A abstenção, a abjecta abstenção, é um crime, a demissão da cidadania. Os que resvalam para a abstenção, envergonhando os pergaminhos da democracia, carregam as piores injúrias. Em vez de se perceber porque há tanta abstenção (talvez fossem desconfortáveis os resultados), olha-se para o lado e alguns ensaiam a duvidosa democrática ideia do voto obrigatório. Conceda-se: matava-se o problema pela raiz. Falta saber a que preço.


Há dias a ideia voltou para a arena pública pela voz do presidente do governo regional dos Açores. Ontem, um politólogo da nova vaga (Pedro Magalhães) escrevia sobre o assunto no Público. A certa altura sustenta que "(d)o ponto de vista normativo, sobre o que a democracia é ou deveria ser, o argumento de que existe um "direito a não votar", de que o voto não passa, na melhor das hipóteses, de um dever moral ou cívico e de que a imposição de penalizações a quem não vota é uma violação dos direitos e liberdades individuais é, claro, perfeitamente defensável. Tão defensável como a noção de que o voto seria apenas mais uma de muitas outras obrigações a que os cidadãos numa democracia podem ser vinculados – colocar os filhos na escola ou pagar impostos, por exemplo – e de que ninguém é obrigado a fazer uma escolha que não deseje num sistema de voto obrigatório (mas apenas a comparecer na assembleia de voto, podendo votar em branco ou nulo). Antidemocrático? Vinte e nove democracias no mundo prevêem hoje o voto obrigatório. Em países como a Bélgica, o Luxemburgo, a Austrália, o voto obrigatório é imposto com recurso sistemático a sanções monetárias consideráveis. É preciso algum contorcionismo argumentativo para conseguir estabelecer que estes três países, por exemplo, são menos "democráticos" ou menos "livres" que Portugal devido ao simples facto de punirem os eleitores que não votam."


Há que notar a cautela: "do ponto de vista normativo". Como quem diz, do ponto de vista das ideias, é tão defensável dizer que o voto é um direito acima de um dever como manter a ideia contrária. Tudo depende dos argumentos. E, sobretudo, dos pressupostos que precedem os argumentos. O politólogo foge como o diabo da cruz de uma posição inequívoca. Não nos diz ao que vem. É uma certa forma de fazer ciência, que tem horror a exibir posições que coloquem os cientistas sociais de um certo lado da barricada. Só que esta maneira de estar, tão ao jeito do "não f*** nem sai de cima", não chega para afirmar posições de autoridade intelectual. É nestas alturas que prefiro a ciência engajada, tão popularizada pelo guru Boaventura Sousa Santos e seus discípulos. Ao menos sabemos com o que contar à partida. Podemos não concordar, mas não há ali qualquer ambiguidade.


Magalhães tem uma posição que tanto dá para um lado (recusar o voto obrigatório) como para o outro (aceitá-lo como imperativo). Todavia, quando interroga se a obrigação de votar é uma violência à liberdade individual quando ela existe em vinte e nove países, percebe-se onde quer chegar. Pode afirmar que só por "contorcionismo argumentativo" é que Bélgica, Luxemburgo e Austrália são menos democráticos do que outros onde o voto não é um dever. O seu contrário também é legítimo: só por contorcionismo argumentativo é que alguém pode ditar as menores credenciais democráticas dos países onde o voto não é obrigatório.


No seu blogue, Magalhães escorrega para um argumento simplista: "(o) facto de se erigir a liberdade individual como único e exclusivo princípio em torno do qual se deve organizar a delegação de poder dos cidadãos em representantes numa democracia (ignorando os restantes princípios básicos, a saber, igualdade política e capacidade de controlo dos representantes) e querer sempre terminar por aí qualquer discussão é bastante revelador da cultura política de um certo tipo de liberalismo." Com posições monolíticas a discussão de ideias torna-se num diálogo de surdos. Ou, se calhar, às vezes a discussão enquista-se mesmo num diálogo de surdos. Outra vez: tudo depende dos pressupostos. Quando os pressupostos desafinam, é como resolver um problema matemático e se falha logo a primeira equação.


Para um libertário, a liberdade individual tem mais valor do que a igualdade política (uma miragem) e a capacidade de controlo dos representantes (um lirismo). O voto como direito vem antes, muito antes, do voto como dever. Aliás, para um libertário não faz qualquer sentido contemplar o voto como dever. É um direito com indeclinável faceta voluntarista: exerço-o se essa for a minha vontade, sem qualquer espartilho que venha do exterior. E comparar o voto com o dever de pagar impostos é comparar o que não é comparável. Ou forçar uma comparação só para forjar uma conveniente conclusão.


Enquanto o voto for uma decisão individual e não escrutinável pelos demais, quero fazer com o meu direito de voto o que me aprouver. Mal de nós se as decisões individuais fossem susceptíveis de esbulho. Um dia destes, as opções individuais de vida teriam que vir ao tribunal da praça pública para serem caucionadas ou sancionadas pela iluminada lupa de sacerdotes da moral alheia.

Sem comentários: