23.6.09

Trono da misericórdia


Deve ser predicado cristão: as pessoas têm que mostrar piedade com os desvalidos. Para depois fazerem gala da misericórdia. Os desgraçados de toda a espécie convocam a comiseração, sentimento dir-se-ia cristão – os cristãos diriam tratar-se apenas de um sentimento humano. Tenho para mim que a misericórdia apazigua a consciência de quem a pratica, sem cuidar dos que caíram na miserável condição que apela à compaixão.


A palavra maldita, quando se puxa lustro à misericórdia por outros, é "coitadinho". É humilhante. É, ao mesmo tempo, o lacre da suprema ignorância de quem a profere. Às cavalgaduras convencidas que compram a prestações um lugarzinho no céu à medida que forem fazendo misericórdia, nunca ocorreu adivinhar como se sentiriam se trocassem de lugar. Se, por um acidente de percurso, lhes calhasse em azar serem os destinatários da piedade alheia. Não quero acreditar que lhe comprazesse serem tratados com comiseração. Das duas, uma: se, por hipótese, gostassem de resvalar para vítimas da misericórdia, talvez assim selassem a sua profunda ignorância; ou é errada a lente pela qual filtro o problema.


A piedade não é descomprometida. Confunde-se com solidariedade, que deve ser desembainhada quando diante de nós surge um necessitado de qualquer espécie. A solidariedade foi inventada para socorrer os sobressaltados pela desgraça. Mandam os padrões: é quando somos tomados por nobres sentimentos que nos engrandecem. Desprendemo-nos da umbiguista individualidade e entregamos parte de nós aos desvalidos – nem que seja apenas (que este apenas é de uma grandiloquência pedante) acenando o véu da misericórdia.


Há um círculo vicioso na comiseração. Fazemos bem aos carenciados e, no rescaldo, sentimo-nos tão bem com o nosso eu. Se a misericórdia apenas corresponde a desonerar uma responsabilidade que vem de fora, só com o propósito de mostrar que fomos piedosos e achamos que os que receberam a nossa piedade se reconfortaram por dentro, a misericórdia é uma coisa vã. É um grotesco acto de egoísmo. O pior dos egoísmos, pois aparece mascarado com o véu da generosidade com os outros. O que conta é o sentimento que nos invade depois de praticarmos a comiseração que se impõe. Pouco importa se a piedade faz bem ou mal aos que a recebem. Pouco importa se os "coitadinhos" que assim tratamos se sentem humilhados com o tratamento. A misericórdia é uma falácia. Uma estrada de sentido único, por onde se passeia o invisível egoísmo.


Podem contrapor: e o que conta não é o acto e os efeitos que dele se aproveitam? Que interessam os meandros da comiseração se, no final da linha, houver quem se sente reconfortado? O preço que os desvalidos pagam por receberem a misericórdia dos "bem-postos" na vida é insuportável. É a humilhação a que se expõem de cada vez que os piedosos os fitam com ar de comiseração e se lhes solta o ultrajante "coitadinho". E os "bem-postos" na vida desembaraçam-se, de um golpe só, da atormentada consciência de estarem bem na vida – como se estar bem na vida fosse sórdido crime.


O mal pode estar na minha errada perspectiva, mas vejo os meirinhos da misericórdia como gente sobranceira que se encavalita num trono de onde asperge generosidade para que os necessitados o sejam menos. Todavia, ascendem a um trono, de onde olham, de cima para baixo, para a gente necessitada. Com honrosas excepções (os que fazem da ajuda aos carenciados um sacerdócio pessoal, com total descomprometimento), a gente excessiva que exige a si mesma a prática frequente da comiseração eleva-se ao pedestal da misericórdia. Um pedestal não deixa de ser um pedestal, nem que os que lá se colocam digam, como pretexto, que precisam do púlpito para praticar a caridade. Já que tanto se deifica a mirífica igualdade, só esta interrogação: como é compatível o trono da misericórdia com a igualdade, se o trono amplia o fosso entre os misericordiosos e os desvalidos?


Proponho a abolição da misericórdia? Longe de mim. Só proponho que a misericórdia seja silenciosa e discreta. Sem a espectacularidade da comiseração habitual, feita para mostrar que houve misericórdia feita. Essa é auto-misericórdia: a antítese da misericórdia.

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