24.6.09

Agente provocador


Querias ultraje. Querias tempestade intelectual. Esgrimir argumentos. Que interessavam os que se aproximavam das tuas ideias? Só se fosse para logo a seguir deles te afastares. Odiavas odes afinadas. Era patológico: pois nem tu, na tua sublime mas propositada incoerência, concordavas contigo mesmo.


Arremetias com ferocidade contra certezas. Abespinhado contra os cultores de verdades irrefutáveis. Só que também mergulhavas nas ideias que transportavam conclusões. Que julgavas, no exacto momento em que as retiravas, lapidares. Logo a seguir seguias um distanciamento que ia ofuscando as certezas que depressa perdiam espessura. Eras o melhor trunfo para adversários de peleja. Não perdiam uma oportunidade para te esbofetear com os insondáveis mistérios das erráticas coisas que pensavas e dizias. Uma báscula saltitante, a fugir de compromissos com o que tivesse ressonância com "certeza" e "verdade" (as demoníacas divindades).


A certa altura procuraste refúgio seguro, um castelo sossegado onde não houvesse árdua tarefa de tecer os fios de pacientes raciocínios. Era como se em teu redor houvesse uma barreira de coral. Intransponível barreira de coral. Não filtrava as ideias alheias que decantavas da literatura avidamente consumida. Era pior: naquela barreira de coral, as águas sempre mortiças. As águas cheias de nutrientes, as águas alimentadas pelo mar alto, não passavam da embocadura que a separava do mar aberto. Entravas em estado de negação. Um comodismo metódico. Sempre era mais fácil recusar o que te entrava pelos olhos do que uns olhos a irradiarem um pensamento qualquer vindo de – sentias – provectos neurónios.


Em estado de negação, cresceu a afeição por uma travessura: desmontar as incontestáveis certezas dos paladinos de certezas incontestáveis. Tinhas um prazer sórdido quando desabavam, em ruínas, os edifícios que vinham de preces alheias. Era-te indiferente o isolamento. Indiferente a que te achassem aberrante figura, excêntrica personagem que se entretinha a destruir o que outros tinham acabado de edificar. Os prazeres decantavam-se na provocação, umas vezes escrupulosa, outras vezes pelo simples gosto de provocar quem ficasse a jeito de ser provocado. Ias esmerando um terrível mau feitio. E assim te encerravas na torre de marfim que escondias, num mundo muito particular, dos olhos indiscretos.


Envelhecias. Dir-se-ia: apressavas o envelhecimento. Os espelhos ausentavam-se da tua torre de marfim, onde os ecos do que dizias se perdiam na noite infinita. Havia quem entendesse a rebeldia que irava os que provocavas? Um punhado de gente. Uns por habituação, gente da casa – da casa com paredes e telhados a sério, não da imaginada torre de marfim. Outros por intuição, um golpe de asa, um acaso da sorte. Quando escutavas a contraposição das provocações, fervia uma irreprimível teimosia. Dar o braço a torcer; não era função que conhecesses. Podias admiti-lo nos esconderijos onde guardas os segredos que mais ninguém conhece. Jamais em público, ou perdias a noção da destrutiva metáfora do mundo que te acolhia.


Desse mundo que te repugnava. Ó, odioso malabarismo das negações, que consumias a razão de uma existência. A certa altura, já seguias anestesiado pelos apodrecimentos de todos os lugares. Só cheiravas o ar putrefacto de gente bem composta, os algozes do alindamento de um mundo que te parecia, a cada dia que passava, mais insuportável. Estranhamente, era nisso que encontravas nutrientes. As malsãs cores com que tudo vinha pintado eram o agridoce manjar que ora te enjoava, ora te arrebatava os sentidos. Deste contigo abraçado a um interminável rol de contradições: ora era castigo de umas ideias ou de umas palavras, ora te empenhavas em destronar a vivacidade dos que nisso contigo outrora alinharam.


Às vezes surgia esta pergunta diante de ti: e se fizesses de conta que és o contrário do que és, só para experimentar método de que tens aversão? Aconteceria gostares até de ti? Acabaria essa saga, a de seres agente provocador – e de ti mesmo, por cima de tudo o mais?

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