1.6.09

La Fura dels Baus, “Boris Godunov”


E se fôssemos convidados a perceber as motivações de terroristas? E se, por aí, fôssemos convidados à condescendência com o terror que espalha violência, cego? Dizem: tudo tem as suas causas e as suas circunstâncias. Nada surge do nada. Não há actos, e ainda por cima actos que gritam uma violência inaudita, enxertados de leviandade. Serão actos que exigem compreensão pelo cenário extremo em que acontecem?


A companhia catalã de teatro levou à cena uma peça inspirada na ocupação de um teatro em Moscovo por um grupo de terroristas da Chechénia. A plateia foi sequestrada e usada como trunfo contra as autoridades russas. Durante três dias, os terroristas chechenos tiveram os holofotes do mundo virados sobre si, sobre a sua causa. Os La Fura dels Baus encenaram os três dias de sequestro. Os actores faziam as vezes dos terroristas que tinham ocupado o teatro enquanto os espectadores assistiam à peça Boris Godunov. Era como se houvesse uma peça de teatro dentro de outra peça de teatro. Quem assistia a este palimpsesto teatral vinha à boca de cena como involuntário actor. Não é insólito nas peças dos La Fura dels Baus, que sempre se distinguiram pela interactividade, por vezes até desagradável e provocatória, com o público.


A intimidação e a violência latente troavam. Era como se tudo se estivesse a passar como naquele dia em que os terroristas chechenos ocuparam o teatro em Moscovo. Toda a tensão da ocupação. Os terroristas encapuzados a sitiarem os espectadores, enquanto armadilhavam o teatro. Tiros para o ar, assustando os espectadores. Um estrondo tremendo, simulando o corte de electricidade que pôs o teatro às escuras. E a pose intimidatória dos actores que rondavam os espectadores, andavam pelo meio dos espectadores, de arma em punho. Uma vez por outra, a intimidação crescia quando um dos terroristas trazia um refém ao palco – mas um actor infiltrado entre os espectadores. Não fosse algum do público estar estupidamente divertido com a encenação, rindo-se com desdém dos terroristas que faziam a ronda, e tudo se passava como se estivéssemos sitiados naquele teatro. Não éramos apenas figurantes. Éramos tão actores como os actores que seguiam o guião.


Havia câmaras espalhadas pelos corredores e pelos camarins do Coliseu. Víamos o que os terroristas faziam nos bastidores do teatro. Despíamos então a condição de sequestrados e passávamos a ser espectadores do que os reféns não viram. Assistimos às negociações entre os terroristas e a mediadora indicada pelo governo russo – uma chechena exilada. E conseguimos deitar um olho na célula de crise comandada pelo presidente russo. Espreitámos as conversas que equacionavam os vários cenários para a resolução da crise.


Uma peça de teatro dentro de outra peça de teatro. Uma das terroristas, uma jovem rapariga com vinte anos, fora actriz. Pergunta-lhe um dos comparsas pelas peças que representou. A rapariga rejeita responder, não estava ali para lembrar que fora actriz. Mais tarde, quando acompanha um dos actores à casa de banho, é interpelada pelo actor. O diálogo interceptado por um dos líderes dos terroristas, o mais violento e instável deles, faz com que o actor e a terrorista que foi actriz tenham que contracenar durante uns instantes. Contracenaram a peça que o actor estava a apresentar ao público sitiado. A peça em que a actriz agora terrorista tinha participado antes de se fazer activista da causa chechena.


Os enxertos da peça Boris Godunov têm um simbolismo. A peça é sobre um déspota que tomou conta do coração do povo, do povo incauto que se deixa enamorar por déspotas que só revelam essa condição quando tomam o poder. Ao serem déspotas, inicia-se uma espiral de terror e intimidação que parte das próprias autoridades. A esquizofrenia do déspota leva-o a considerar prioridade a perseguição aos conspiradores que sabe, ou apenas imagina, existirem para lhe tirarem o poder. Num diálogo entre dois conspiradores, um deles insiste em usar do terror para depor o déspota. Pois os fins – sublinha – justificam os meios, quaisquer que sejam. O déspota acaba por morrer envenenado pela sua própria cicuta.


A peça traz pinceladas de filosofia política. Quando o cansaço se apodera ao terceiro dia de sequestro, os terroristas mostram-se agitados pelo jogo de paciência das autoridades, que tardam em dar um sinal. Divisões entre os terroristas. Hesitações que levam os hesitantes a interrogarem se ainda faz sentido manter toda aquela gente sequestrada, gente inocente. O líder dos terroristas declina, ele também entoando a voz do déspota daquele teatro: os espectadores sequestrados não são inocentes, pertencem ao país ocupante. Escolheram os dirigentes do país ocupante. Merecem uma punição, caso as autoridades russas não ouçam as exigências dos separatistas chechenos.


Perguntei-me: não haverá uma cegueira entre os terroristas, ao não distinguirem entre coniventes e inocentes? E, por esta cegueira, e pela gratuita violência, faz sentido a condescendência com o terror?

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