29.6.09

O rio pedregoso


Nasces difícil, rio que te encavalitas na serrania granítica. O ténue fio de água que irrompe à superfície cavalga monte abaixo. Perseverante, esburacas o granito. És mais forte que o pétreo granito – quem diria? E, contudo, o teu curso inicial, por onde o caudal avança com esforço, faz lembrar um embrião que luta para vingar. Uma luta, dir-se-ia, titânica. A crer nas curvas que te revolvem o caudal, nos saltos vertiginosos que te transformam em cascatas, das rochas que moldas com a paciência do tempo quase infinito. Atrás do caudal que parte em demanda da sua foz, deixas um amontoado de pedras esculpidas, o teu leito cavernoso por onde o caudal nascente convoca todas as forças para derrotar a força da granítica serrania.


Percebo-te, ó rio selvagem, como metáfora da vida? Serão esses teus passos iniciais, nas escarpas que se abriram para que tu abrisses passagem, a imagem fiel de uma existência que acabou de ser criada? Diria que é tudo ao contrário da sugestiva metáfora. As vidas são fáceis quando se libertam do ventre materno. Os nascituros numa redoma de vidro, em toda a sua fragilidade, antagonizam com o selvático meio por onde o rio nascente tem que fazer o seu caminho. Ao contrário: no rio nascente o trajecto inicial é o mais sofrido. Quando as alturas da serrania ficaram para trás, o rio amansa à mercê da planura do terreno. Acalma o caudal, já cansado, no lento percurso até encerrar os olhos na foz que o espera.


É a contemplação da desordem que compões quando as tuas águas se soltam da nascente que me extasia. O caos que só a natureza amplia. Uma revoada de calhaus. Uns pequenos, outros de grande porte, perturbam o teu leito. É contra as pedras que as tuas águas se esmagam. Às vezes, as águas repousam por breves instantes em lagoas, dir-se-ia, aluviões de descanso onde elas amainam da árdua labuta. Não se demoram na quietude das lagoas fundas. Logo se precipitam no declive do terreno, ora suave, ora pronunciado. Quando as pedras atraiçoam o passo e um degrau vertiginoso está pela frente, o cadafalso empresta ao caudal a fúlgida forma de cascata. É quando a fúria das águas adultera a sua cristalina pureza, transformando-a em espumosa torrente, um manto branco que se substitui à transparência do caudal.


E o rio debate-se, rompendo a serrania dura em precipícios assustadores e curvas pronunciadas. Parece que o caudal sente o pulso à serrania, insinuando-se por onde os montes se tecem nas suas escondidas fragilidades. Nunca linear, nunca devagar, o inicial caudal é uma apressada língua de água que esburaca as duras rochas serranas em demanda de paragens vagarosas. É como se o rio nascente depressa se cansasse da sua infância, atormentada infância escavada entre paredes escarpadas, e buscasse um lugar onde as águas possam vogar na sua mansidão.


Mas é lá em cima, quando o rio nascente se precipita pelas cavernosas paredes que o comprimem numa camisa de varas, que ele exala o seu fascínio. A acareação da natureza com o seu estado bruto, indomável. E toda uma lição: de como uma titânica luta de desiguais se converte na vitória da parte que à partida parecia a mais fraca.


O simbolismo, só por aqui. Desengane-se quem ousar tecer pontes com a existência humana. Tudo no seu contrário: a infância da vida humana toda protegida num hermético casulo, ao contrário das águas que se fazem selvagens, uma força indómita para vergar a resistência das robustas pedras no curso inicial por onde se escava o caudal. Analogia, só quando se olha aos passos derradeiros da existência humana, consumidos que são pelas forças exangues. É como no rio já domado pela planura do terreno, onde os verdejantes aluviões tomaram o lugar das graníticas constelações de rochas. Num e noutro caso: as águas fluem, só à espera de serem tragadas pelo suspiro fatal.


Também a existência tem a sua foz derradeira. A sua exaltação, lá nas alturas onde o rio escava o seu caminho no pedregoso leito.

Sem comentários: