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Eu julgava que já pouco se intrometia entre o conhecimento e a sua ausência. Julgava que há sinais tão claros que as conclusões se oferecem com a nitidez de um céu claro soprado por uma nortada fresca. De vez em quando irrompe um palco inesperado, um actor sibilinamente mostrando a negação das impossibilidades.
Às vezes via homens passeando a assimetria do tamanho das unhas dos dedos, a do dedo mindinho sobrepujando as unhas dos outros dedos. É voz corrente que estes boçais conservam aquela unha avantajada porque é o dedo mais fino, o dedo mais a jeito para a limpeza do pavilhão auricular. É voz corrente; a honestidade não me deixa dizer que já vi estes exemplares da boçalidade lusitana a meio da função higiénica, abjurando a matéria cerosa que nasce onde o pavilhão auricular mergulha na escuridão. E não sei se será coincidência: pelas andanças por terras diferentes nunca vi ninguém a cultivar o agigantamento estratégico daquela unha.
Almoçava em Mangualde. Na mesa à frente, um casal e a adolescente filha. Enquanto amesendava umas entradas, acompanhei o ocaso do almoço da família. O homem que trajava camisa aos quadrados brancos e laranja, por cima de uma t-shirt laranja que tão bem casava com a cor da camisa, debatia-se com sobras alimentares encavalitadas entre as protuberâncias dentárias. Com alguma descontracção entaramelada com discreto pudor, deu corda ao dedo mindinho da mão esquerda. A mão direita – o sinal do pudor discreto – era um biombo à frente da boca enquanto decorria o polimento dentário. Os abismos entre e no meio dos dentes tinham que se libertar das adjacências do almoço. Da maneira como exercitava o dedo, com uma destreza impressionante, diria que aquela boca já não visitava dentista há uns anos largos.
Da primeira vez que esbarrei na perícia, desviei o olhar. Era como se tivesse pudor pelo homem. Mas naquele dia estava meio sociólogo, meio antropólogo. Quem, entre os observadores da espécie e os anotadores de comportamentos, se podia gabar de dar de caras com um espécime dando uso insólito à idiossincrática “unhaca” do mindinho? Encarnei personagem sem pudor com a falta de pudor do homem. Como se fosse um cientista no meio da selva a ter o privilégio de testemunhar raro fenómeno da natureza. Fixei o olhar enquanto a unha maior do dedo menor basculava a cavidade dentária de um lado para o outro, com insistência de conhecedor. O homem reparou na minha indiscrição. Eu jurava que não estava em pose moralista. Quis evitar um sorriso cínico: meti a cara de pau número cinco, a pose eanista. O homem ficou incomodado. Terá percebido que a limpeza de salão bocal era – como dizê-lo sem corar? – inapropriada?
O meu olhar insistente terminara a exibição de higiene dentária em plena mesa. Fiquei arrependido do intrépido sobressalto da curiosidade. Não pude aprender mais detalhes da especialidade com o catedrático da função. Não que estivesse carenciado, que tenho – como diria o grande Cesariny – “lavados e muitos dentes brancos à mostra”. O desassombro que incomodara o engenheiro das obturações dedais fora meu desengano. Só tive direito a uma pequena amostra do irrepreensível escovilhar dos dejectos do bacalhau assado que se intrometiam entre dois dentes onde faltava a ponte natural.
Estabeleça-se para a posteridade do conhecimento que a unhaca que cresce com desvelo é multifuncional. Serventia auricular e bocal. Enquanto metia uma garfada de espadarte grelhado à boca, interroguei-me se a unha sobresselente não tem outras serventias, digamos, à guisa de choque para as convenções. É que ao virar da esquina estão todos os insólitos só à espera que retiremos o empoeirado oleado que os cobre.
4 comentários:
A carência consiste na falta do rigor do conhecimento científico, implicativo nas componentes do método histórico, em pose poética da característica e definição de base aristotélica do caso. Vejamos um exemplo:
http://www.youtube.com/watch?v=8gkK-xJEGNM
A genialidade deste post fez-me lembrar um sketch não menos genial, onde se pode assistir à utilização da unha estratégica aos 1:08
http://www.youtube.com/watch?v=kV_eQPIlfbQ
Não sei como vim parar aqui, genial KKKKK
Não sei como vim parar aqui, genial KKKKKKK
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