3.12.10

Diário de um narcisista incorrigível (II)

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(Na primeira pessoa)
A voz da rapariga, senti-a trémula. Admito que foi uma surpresa. Não contava que a timidez a deixasse pegar no telefone. E apenas uns escassos minutos depois de ter deixado um discreto papel com o meu número de telefone ao pé da factura do almoço. Excitou-me esta paradoxal ousadia da menina. A voz enervada perguntou porque lhe tinha deixado o número de telefone.
- Para me telefonares. E podes-me tratar por tu.
- Quer gozar comigo?, perguntou com a voz a deslizar para a melancolia que então suplantou o nervosismo.
- Não entendo. (E fez-se um silêncio demorado.)
- Se me deixou o seu telefone é porque quer alguma coisa de mim. Alguém da sua condição não pode querer coisa boa de mim.
- Ora essa!
- Quer gozar comigo, só pode ser isso. Tinha-o em boa conta, mas afinal estou enganada.
- Como deves imaginar, não quero casar contigo, retorqui, assertivo, com alguma rispidez na voz.
- Mas...os olhares, o seu sorriso para mim...
- Atracção. Só atracção. Eu nem te conheço. E tu não me conheces.
Alguém bateu à porta e pediu licença para entrar. A pessoa muito importante que tinha uma reunião marcada para uma hora que já passara há quinze minutos aguardava na sala onde recebemos as visitas. E já se impacientava.
- Olha, estou ocupado. Esta primeira conversa não começou bem. Dou o benefício da dúvida. E digo-te ao que venho: tu excitas-me.
- Huum...não sei o que dizer.
- Posso-te convidar para jantar. Estás livre ao fim do dia?
- Só saio às oito. (Fez uma pausa para engolir a voz trémula que se havia posto outra vez.) E ainda tenho que ir a casa. Se calhar fica muito tarde para si.
- Para mim nunca é tarde. Agora vou desligar que estou atrasado para uma reunião. Telefono mais tarde para combinarmos onde te posso ir buscar e a que horas.
Na sala de visitas, o figurão muito importante exalava a impaciência pelos poros. O truque para quebrar o gelo da impaciência é o discreto charme. Começar a conversa com elogios à pessoa que se impacientou com o meu atraso. Assim como assim, a reunião tinha sido pedida pelo figurão que estava ali diante de mim, mal-educadamente encafuado na poltrona enquanto o cumprimentava. Ai dele que não desfizesse a cara emburrada que trazia assim que entrei na sala. Era meio caminho andado para não haver o acordo a que vinha. Retribuiu os elogios. Tudo se compôs então.
A reunião durou pela tarde fora. Uma negociação dura. Ao início, as coisas não estavam a meu favor. Deixei-o subir na sobranceria. Fui dando o flanco. Os meus assessores estavam lívidos. Não entendiam porque estava a amolecer. Ao fim de quase três horas, lembrei-me da promessa que fizera à rapariguinha do restaurante. A bem dizer, estava-me nas tintas para a ansiedade que ela estava a sentir, olhando a cada minuto para o telefone à espera do meu prometido telefonema. A minha excitação interior era a motivação que contava.
Decidi dar o golpe de asa na reunião. Virei o jogo, de repente. Embaracei o figurão que já se convencera que ia sair com uma negociata na irritante malinha que trouxera consigo. Usei um trunfo escondido caso me sentisse encostado às cordas. O tudo ou nada. O arrogante figurão ficou afogueado, desapertou o nó da gravata que lhe garroteava a respiração. Descera a uma humilde pose. Comprazi-me com a humilhação que se soltava das gotas de suor que lhe escorriam pelas laterais do rosto. Os meus assessores não paravam de dar os parabéns no fim da reunião.
Já entardecia. Fiz o prometido telefonema. Notei o alívio da rapariguinha quando escutou a minha voz. Combinámos os detalhes. Haveria de ser o epílogo de um dia memorável. De mais um dia memorável, como são quase todos os que passo na minha companhia.

6 comentários:

Anónimo disse...

só gostava de ter a sorte da rapariguinha ,tenho a certeza que és o narcisista que qualquer mulher gostava de encontrar......

PVM disse...

Estes galanteios fazem bem ao ego. Pena que não seja narcisista (nem o tal, o do texto)...

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

(Risos) Eis mais uma prova (se ainda dúvidas havia!) de que o cérebro é o nosso órgão mais sensual!
Bem, para quando o prólogo?

PVM disse...

Agora vou fazer de "loura" (sem ofensas para ninguém): o prólogo de quê?

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

quem fez o papel de "loura" (continuando em terreno pacífico) fui eu! O epílogo, queria eu dizer.

PVM disse...

Ah, o epíolgo! Aquele era um conto em dois actos. O epílogo fica ao critério da imaginação de cada um.