31.1.12

Matarruanos são os urbanos


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A boçalidade nos rurais com parca instrução e maus modos? Desenganemo-nos. São uns puros. Podem ser boçais, rudes, mal educados. Rostos fechados e antipatia a rodos. Mas não perderam o rasto dos “valores”, da decência, da compaixão, da entrega ao outro sem serem curadores de retribuições. Estivesse todo o mal nas áreas rurais e andaríamos mais perto do apuro.
O mal está na simulação inteira que tomou conta das grandes urbes. Tudo é artificial. O que os citadinos nutrem uns pelos outros. Nada é descomprometido. É um vagar de oportunismos que esvazia por dentro a essência que devia ser humana. Fingem a sua própria felicidade, absortos nas consumições estéreis e falsamente iludidos pela imaginada ausência das grandes consumições. Escondem-se em fragmentos atirados para os olhos por uma tribo que ensaia os modismos do momento, os modismos que fica mal não perfilhar. Uma dissidência, e é o ostracismo.
O desapego é mortal. Tanto se fala dos mitos urbanos e esquecem-se os seus cultores do maior, e pior, dos urbanos mitos: a horda citadina, feita de diversas tribos parcelares, um vasto lugar da heterogeneidade, uma maré caudalosa de gente inexpressiva, indiferente a quem se senta ao lado no metro ou atravessa a passadeira na grande avenida. O pior dos antros, ah!, esse reside nos covis onde tribos específicas se inebriam com a vida noturna. Onde consomem música debitada em estridentes decibéis, onde corpos apinhados se roçam sem notarem a pulsão dos corpos tocados, onde se encharcam de substâncias que são o fingimento da jovialidade.
Os valores, os tradicionais valores, foram usurpados pela modernidade que acompanhou o êxodo para as grandes cidades. O ajuntamento teve o predicado de esvaziar as gentes, remetidas à condição de autómatos que se iludem num arremedo de nirvana.
Eu ouvia o discurso debruado a sobranceria e soube que o campo, e o isolamento que ele traz, não eram para mim. Talvez seja daqueles destravados que ficaram órfãos de “valores”. Oh, os “valores”, tão importantes para a elevação da condição humana. Os “valores”, cobertos pelo dourado manto da objetividade. Fosse isso possibilidade, todavia desmentida pelo genético atributo que nos faz diferentes uns dos outros.

30.1.12

Bunker (ou: isto ainda vai acabar mal)


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Lindo, o serviço. Oxalá se deixasse estar vagaroso na harmonia da demorada hibernação. Ao menos não fazia estragos. Por todo o lado, os estragos. De resto, aprendera as lições por dentro da poeira antiga do bunker. Era uma muralha que tecera, com paciência. Julgava que nada podia mestiçar o pressentimento dos pretéritos ateados por equívocos. Manda a sensatez que os enganos têm a serventia de os evitar quando o porvir enfim aterra na sua hora.
Mas o corpo debatia-se com os seus instintos. Debatia-se com as algemas intelectuais, elas apontando para um lugar nos antípodas dos desejos cobiçados. Um dilema sacrificial – pensava, assoberbado pela quintessência dos instintos que emprestavam demónios irrefreáveis ao pensamento, tentando contaminá-lo. Tudo apascentava hesitações. Os dias adiavam-se, enredavam-se uns nos outros, tal como a resolução (qualquer uma que fosse) que esperava.
Um clarão assomou a um canto do pensamento. Podia ostracizar os dilemas se ocultasse as armadilhas que trazia a tiracolo sempre que espreitava no tempo pretérito. Como se a contagem começasse no dia presente. De um folha em branco, sem os vincos do papel amarelecido e amarrotado. Só precisava de um clã que murmurasse ao ouvido que as patilhas do tempo arpoavam seus ferrões no dia zero, no dia que dizia as palavras que importavam a partir dali, daquele tempo que se ensaiava novato. Nem sequer caução para os arrependimentos. Nem dos que viessem arpoados ao tempo futuro, quanto mais aos que sobravam do conhecimento dos tempos já idos.
O bunker era o seu cárcere. O desbravamento dos nós que atavam a ossatura proclamou a brevidade do tempo que tivera combustão. O tempo exaurido em cinzas incógnitas. O bunker já não era refúgio inacessível contra as catilinárias herdadas do exterior. Demorara tempo a intuir: o bunker de onde se tornava altivamente distante era o receptáculo do seu marasmo. Para agravar o diagnóstico, desconfiava que o desenfado do bunker podia acabar mal.
Os olhos ecoavam um clamor como nunca fora dado a sentir. Podia acabar mal. Mas se não ousasse, jamais saberia a contradita. 

27.1.12

Cavaco, o insolvente


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Pediu o Público a ilustres personalidades que filtrassem os consulados de Cavaco e lhe dessem um cognome – num extático arremedo aristocrático, como é costume fazer com os reis, que não casa com os pergaminhos da república nem com a careta da personagem a quem pespegaram o cognome. Cometo o topete de me juntar à fanfarra (em faltando os pergaminhos de “ilustre”). Aqui vai o meu palpite: “Cavaco, o insolvente”. A explicação vem das nada fleumáticas palavras em que a excelência destilou imprópria choradeira por o que entra todos os meses na sua recheada conta bancária não chegar para os gastos.
É um facto comprovado empiricamente: quanto maiores as alcavalas, maiores os vícios. Mal anda o maior economista vivo da pátria (assim pensa de si mesmo) quando dá públicas lições aos súbditos acerca do milagre da poupança e depois tem um deslize que deixa à mostra os seus hábitos de prodigalidade. O episódio vem mesmo a calhar. Agora percebemos por que a personagem não foi capaz de meter as finanças públicas em ordem quando foi primeiro-ministro durante dez anos.
Para o caso, pouco importa (sei que quase toda a gente discordará deste argumento) que a soma das pensões deste reformado esteja no plano onírico para o comum dos mortais. Para mim, o que importa é que o senhor seja um paradigma do consabido “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Prega a castidade dos gastos e depois admite que fracassou ao passar à prática os doutos ensinamentos proferidos, como é hábito, desde o alto da sua cátedra onde exsuda imensa autoridade intelectual.
É de deixar vir à tona toda a comiseração possível, contudo. Como logo a seguir se auto-apodou “provedor do povo”, não podia haver maior ato de humildade. Ele é lá para qualquer um a pessoa mais importante da pátria admitir que está à rasca de dinheiros? Sim, é um fiel provedor do povo. Porque o “povo”, certamente na sua larga maioria, tem as mesmas queixas que Cavaco, o insolvente.
(Só não tem os mesmo proventos. Mas isso é outra conversa.)

26.1.12

Roda vinte e seis


In http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/89/Cyclone_Catarina_from_the_ISS_on_March_26_2004.JPG/250px-Cyclone_Catarina_from_the_ISS_on_March_26_2004.JPG
Desembaraçada, um furacão que levava tudo à frente quando a fúria irrompia na companhia da manhã. Não era a franzina compleição que impedia ser despachada. Não se intimidava com os matulões, nem por lhes chegar apenas meia-leca acima da cintura. Quando era preciso, berrava mais alto. Punha-os em sentido quando moldava o olhar iracundo que deixava inerte a ossatura dos outros.
Não esperava que tratassem dos assuntos que lhe pertenciam. Metia os pés ao caminho e, com as mangas arregaçadas, dava andamento até às vulgares tarefas. Era um vulcão que nunca adormece. Não tinha abatimentos, nem um arrependimento pela torrente incendiada de palavras que esmagavam quem lhe fizesse frente. Dava gosto vê-los a meterem o rabo entre as pernas, quais cães sarnentos envergonhados pela estridência que se abatia em cima deles.
Não era enganada pelos varões avulsos que ensaiaram aproximação com segundo sentido. Tirava as bissetrizes à distância e, antes que avançassem por onde não deviam, punha tudo em pratos limpos. Com linguagem de caserna, se preciso fosse para avivar o entendimento dos convenientemente relapsos de entendimento. Quando uns teimosos insistiam na verborreia e se achavam penhores de especiais predicados, matava o assunto com a ameaça de violência física. Desarmados, recuavam e dissolviam-se no mapa.
Era de armas – disso não duvidavam os que eram próximos. Ao pé dela não havia remanso, não era tutelados tempos mortos. Ele eram exposições, cinema, livros que desatavam um quase existencial pleito com quem embarcasse na discussão, cães abandonados e a incorrigível falta de sono. Ao pé dela os dias eram um carrossel interminável. O tempo, açambarcado com usura. Os olhos não descaíam no firmamento onde apenas vogava o nada. Os corpos não tinham tempo para abdicar da sua febre. As palavras matraqueadas erravam num caudal voraz, como se fossem martelos pneumáticos percutindo as cordas sensoriais que não se podiam remeter à hibernação.
O corpo murcho não fazia jus ao vulcão interior que tudo deixava em desassossego. 

25.1.12

As paredes têm ouvidos


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgV76UgLW2XiBCJaIBJIeIzCpk3P0M_-7g166v4gcHgxfTkvXzTG8xD_Lt_8wJlYq_jIqvBOH2JOPAk92eBnOXowAWCyQqXa7iPeKWECi71TpHKH_pR_5QpK69LSlFK_W9VrZm2/s1600/.08.jpg
Um arame a rasgar a planície. A perfeição do quadro espremida pelos pulsos agitados atesta o sopor da planície. Simulam-se os olhares, emprestando verniz às conveniências. Afinal, a planície escondia uma cova funda, uma cova tapada pelas primaveris urzes que enfeitavam a demora.
O quadro pendurado na parede. Em paciente observação, os olhos notam que o quadro esconde diversas camadas. Hesitam, os olhos. É como se detrás de uma espessura se escondessem as matizes que importam. A certa altura, às mãos apetece rasgar a inércia do quadro, espreitar os seus contrafortes, sondar se na sua escuridão não se resguardam os sentidos demandados pelo espírito em desassossego. O rosto cola-se à fria parede amarelada. Investiga os poros do reverso do quadro, como se ali estivessem os antípodas da planície retratada em cores outonais. Porventura à espera de encontrar as porosidades das montanhas que se amontoam umas nas outras, e entre elas, os desfiladeiros temerários que se precipitam no vazio à procura do regato que sussurra.
E à medida que o rosto se esmagava, sentia o ouvido preso à parede. Sentia-se um inseto prestes a ser devorado por uma planta carnívora, tamanha a força centrípeta exercida pela parede. E quanto mais força fazia para o exterior, mais o rosto se colava à parede, o ouvido literalmente fundido na parede. Começou a escutar um amontoado de vozes indiferenciadas. Um rumor imenso, vozes masculinas, vozes femininas, vozes envelhecidas e trémulas, vozes infantis entoando a inocência da idade, vozes alteradas ou vozes profícuas. Era impossível detetar uma palavra entre o clamor que tomava de assalto o ouvido. As vozes ora cresciam de intensidade, ora soavam como murmúrio.
Os olhos já nem conseguiam distinguir a claridade, o quadro entretanto tombado sobre o rosto. Só sobrava a coreografia de sons. E, enfim, entre o caos de impercetíveis palavras, sobraram algumas que se compuseram em estrofe: “as paredes têm ouvidos”.