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As
cinzas descompunham-se com o vento deposto nos lençóis. No alpendre, libelinhas
coloridas entoavam cânticos gregorianos. O cão, desconfiado com a ladainha,
encolhia as gengivas e punha os dentes à mostra. Rosnava, enquanto a saliva
coalhava a poeira que assentara aos pés da cama.
Pela
porta do quarto entrou um cavalo sem cabeça. Troteava em compasso com a melodia
entoada pelo coro de libelinhas. Os cascos rudes arranhavam a madeira fina do
chão do quarto, cada prego que calçava os cascos a rasurar a preciosa madeira.
Mas o homem não se importava. Aquele pesadelo tinha os folhos de uma catarse.
Era como se fosse imperativo mergulhar demoradamente a cabeça em água
purificada, arremetendo contra a apneia até ao limite. Ao vir à tona, a água
entretanto engolida a meter-se nos poros dos pulmões, tossia. E a cobiçada purificação
a crescer pelo corpo até se meter na mais profunda ossatura. Um cavalo
despojado de cabeça assistia ao processo, como se fosse possível algo
testemunhar se nem olhos assomavam à cabeça decepada. Era, contudo, o curador
da catarse esquadrinhada através do pesadelo aterrador.
Um peixe
fugido às masmorras do aquário debatia-se no seu estertor, rabeando contra a
morte. Uma pequena bruxa, em tirocínio para o porvir, porém já ritualizada na
maquilhagem ensombrecida e na roupagem negra, dedilhava o rabo da vassoura
enquanto ostentava um sorriso cínico. Esperava que a vertigem do pesadelo
tivesse um fundo de onde o homem não se resgatasse. Ninguém teria a ousadia de
lhe dar uma mão. O homem estava por sua conta – e em serventia do contumaz
pesadelo. A pequena bruxa apanhou uma reprimenda da mestra. No olhar severo,
percebeu que não era função praticar infâmias. Desviou o olhar para o cavalo
descabeçado. Era a ordem, a silenciosa ordem, para devolver a cabeça ao cavalo.
Do pé
para a mão, o cavalo já na posse da cabeça ruminava a relva arrancada de um
prado vizinho. A poeira evaporou-se. O peixe, pelo seu pé, arranjou força para
regressar ao aquário. O cão adormeceu, limpando com a língua a saliva derramada
na colcha, enquanto as libelinhas voaram para nenhures. E o homem acordou,
coberto de suor. Mas retemperado.
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