23.1.12

A cozinha é a libertação do homem


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Um território hostil para as gerações de antanho, os varonis personagens com uma relação utilitária com a gastronomia: só eram bons garfos. Dos bastidores sabiam nada. Era lugar proibido, não se hipotecassem as credenciais másculas pela intromissão nas tarefas que a intemporalidade da história reservara às mulheres.
Um conservador acorrenta-se aos usos, não interroga os costumes que incorpora como adquiridos. Se não fosse a ousadia de uns que começaram a frequentar os vapores das cozinhas, hoje a culinária era feminina. Só que às vezes são os homens que rompem com o marasmo onde se deita a improfícua desigualdade de géneros. Não foi um greve feminina que atirou os homens para a cozinha, para os ingredientes e os utensílios que não sabiam domar, os livros que ensinam as receitas, a ousadia da invenção de iguarias. Eles meteram os pés ao caminho e só pararam na cozinha.
O proto escritor entrevistado num jornal, aquele que também é comentador de atualidade numa televisão, descobriu que a cozinha é o seu território de emancipação. É um bocado diferente – diz quem já leva mais de metade da existência pelas artes da gastronomia amadora. É um sortilégio. Entrar na cozinha para despachar uma necessidade básica (a alimentação) não é sortilégio todos os dias. A escassez de tempo que infeta o quotidiano e a falta de paciência para retirar uns minutos à lufa-lufa diária para congeminar a ementa podem embeber a magia culinária com os ingredientes da apatia. E a apatia está nos antípodas de qualquer sortilégio.
É nos repastos especiais que há um ritual de consagração. Dos ingredientes que se combinam numa combustão certa. Dos efeitos que a química da gastronomia ensaia, com a curiosidade repleta aguardando pelo produto final. Ou das invenções que crescem do nada por dentro do pensamento, montando-se em sucessivas levas de aromas que se julgam uma combinação certeira.
A única lamentação é alguma perda dos sentidos, olfativos e do palato (degenerescência congénita ou praga das alergias, fazem notar os médicos). Nem assim se dissolve a alquimia da gastronomia. A avaliação pertence aos convidados.

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