30.7.12

O escritor sem prole


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Divagava pelo jardim, os olhos retendo as pedras e as folhas que compunham o chão. Apurava pensamentos. Podia ser que encontrasse inspiração para o texto que um amigo tinha encomendado para o catálogo de uma exposição de arte impressionista. E logo a ele, que abominava o impressionismo. Mas não se recusa um favor a um amigo que abre tantas portas – continuava a convencer-se da ingrata tarefa, enquanto fazia contas à vida (havia contas a pagar e o rédito da incumbência não era de desprezar).
Os passos seguiam uma cadência lenta. O olhar perdido no firmamento aperaltado pelos calhaus e folhas levadas pela ventania haveria de trazer inspiração. Ao longe, sentiu algazarra infantil. Soergueu o olhar ao encontro do som estridente composto por gritaria e risos galhardos. Havia um parque infantil cheio de crianças. Estava no seu caminho e não se desviou. Ao início, hesitou. Ele sabe que não é dado a multidões de petizes, à galhofa pueril, à vivacidade inocente. Admitia a falta de sensibilidade. Não era por acaso que, à sua conta, a demografia não saía da curva difícil em que agonizava. Ser pai não fora vocação. E não era agora, já quase sexagenário, que a página do livro ia ser rasgada.
Sentou-se num banco a apreciar a folia infantil que ia nos escorregas e nos baloiços. Eram para aí duas dúzias de miúdos. Afogueados, o suor a escorrer das testas, em alguns a roupa já encardida de tanto rebolarem no chão apinhado de poeira. De atalaia, uma mão cheia de mães. Enquanto falavam entre si, deitavam um olho protetor às crianças em ávida consumição de folguedo. O grupo de mães deu ao volta e estacionou perto de onde ele se encontrava. Pôde escutar a conversa: uma rivalidade de façanhas dos petizes, um curso rápido de puericultura, mais os planos detalhados em cima do estirador para um porvir repleto de proezas dos meninos à sua guarida.
Meia hora depois, cansado de tanto berreiro e da vacuidade da converseta das senhoras, foi em demanda de outro sítio. Percebeu. O mister da paternidade exige um desprendimento de si que o seu egoísmo não admitia. Naquele dia, depois da amostra do jardim, não se arrependeu de nunca ter sentido a paternidade.

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