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Retificava o olhar. Queria que assim
fosse, depois de um sono demorado. Retificava o olhar, agora que a luz matinal,
fresca como frescas são as manhãs invernais, aclarava os sentidos. Podiam as
dúvidas ser o prontuário de onde irrompiam indecisões. Podiam as inseguranças
ser uma armadilha que o apanhava, às dúzias de vezes. Mas aquela manhã fora o
selo de um apuro das coisas todas. Destituíra as dúvidas e sepultara as
inseguranças. Investira-se na plenitude do seu eu – até daquele eu que
procurava esconder de si mesmo, do eu acantonado no refúgio do pudor.
Um feixe de luz clara invadia o
quarto. Aproveitava a cortina corrida e a janela aberta, que ainda sentia o
odor carregado da noite estouvada de há dois dias. Nem sentira passar esses
dois dias. Era capaz de jurar que os dormira de uma assentada. Mas não era
possível, o sono nunca fora o seu forte. Talvez tivesse intercalado o sono com
um torpor que o levara a acreditar que também era sono. Fosso o que fosse, na
manhã fresca sentia-se um homem renascido. Desta vez, a cura dos exageros da pândega
não cavou uma funda cova onde a cabeça condoída se deitara. Era como se um
tremendo peso tivesse sido desembaraçado de cima do corpo.
Nem o frescor matinal invadindo o
quarto o convenceu a agasalhar o torso desnudado. Entregou-se assim à janela
exposta, sem o menor arrepio. Inspirou fundo, o mais que pôde, enquanto fechou
os olhos. Ficou de olhos fechados algum tempo (não sabe quanto). Sem frio,
ainda sem frio. Notou que a luz que entrava no quarto não se iria demorar:
nesta fase da invernia, o sol é efémera visitação ao quarto, esconde-se depois
de um punhado de minutos. Aproveitou para perceber como a luz clara emagrecia
ainda mal a manhã se fixara. No seu quarto, o ocaso era cedo.
Não se amedrontou, nem atribuiu
significado à luz que se ausentava velozmente. Quando a luz clara deixou de honrar
o quarto, estava sentado na cama, com os cotovelos deitados sobre os joelhos,
quando confirmou a transfiguração. Podia ter sido uma fina claridade. Um
lampejo. Chegara para mudar as lentes por onde decantava o mundo à sua volta.
Tudo era novo. Tudo era uma reinvenção do que fora matéria sombria.
Do lampejo da claridade sobrou uma
semente de amanhã. Tão clara e perene como a claridade que destruíra as
imposturas que foram suas tiranas.
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