In http://www.falaturista.com.br/blog/wp-content/uploads/2010/11/patagonia-na-argentina-em-transformacao.jpg
A viagem era uma sucessão de viagens,
umas pequenas e outras maiores. Entrecortadas pelo fim da linha do autocarro ou
do comboio, quando era preciso mudar para outro comboio ou outro autocarro. A
lição fora estudada em casa: haveria uma constelação de paisagens à medida que
a viagem fosse descendo de norte a sul. Prometera um lugar contínuo à janela e
declarara guerra ao sono. Não queria perder de vista as paisagens por onde
haveria de passar. Dormir, seria parcial desperdício da viagem. Reservaria a
noite para ordenar ao sono que ficasse em dia (quando a noite não reclamasse
outras experiências).
No mais alto norte que a viagem teve,
viajou cercado pelas neves eternas montadas em montanhas num encadeamento sem
fim. Veio atrás do perfume do oceano Pacífico, o comboio desfilando entre as
rochas arredondadas encimadas por musgo vicejante, a vegetação outonal
refletindo o acobreado no mar sereno antes de ser desarrumado pelas tempestades
invernais. Sulcou os pedregosos desertos secos, ausentes de vegetação, numa paisagem crua
que parecia desprovida de vida. Nos apeadeiros onde os passageiros saíam para
se refrescarem, até as pessoas pareciam mortos-vivos consumidos pelo seco
calor. Os catos eram o medonho retrato da paisagem insalubre e, todavia, imersa
numa misteriosa moldura – talvez fosse o imaginário dos western vistos na adolescência, ou da música com ramificações na
região. À medida que a distância se encurtava para a paisagem que haveria de
derrotar as pradarias, inquietou-se com a crisálida de répteis que descansavam
nos subúrbios empoeirados da estrada.
Perto do equador, outra paisagem,
outro clima, gentes tão diferentes. O cheiro a latinidade fazia lembrar a
terra-mãe que deixara na demanda de viajante. Embrenhou-se em florestas
tropicais, onde a densidade das árvores não deixava o sol entrar, nem sequer
pressentir o chão onde os pés podiam pisar. Frequentou bares com ocasionais
companhias, dir-se-ia, duvidosos os seus pergaminhos. Mergulhou na
idiossincrasia das gentes e aceitou convites para substâncias que não conhecia.
Um dia acordou três dias mais tarde, deposto pelo torpor das mistelas
consumidas (veio a saber depois). Avançou às alturas, onde o ar rarefeito
convivia com um calor asfixiante, nos lugares onde a humidade se impregnava por
dentro dos poros, encharcando a pele com um suor fétido e pegajoso. Visitou
templos de outrora, templos abandonados e sem sacerdotes – e não deixou de
compaginar a analogia com o possível devir das religiões de agora.
Milhares de quilómetros a sul, quando
a terra se encolhia e os dois mares prometiam junção, fez-se à solidão da
paisagem ungida pelo frio glaciar do inverno que então fazia. Voltou a ter por
companhia montanhas repletas de neves eternas. Desfez-se no encantamento de um
glaciar ao ver como os épicos blocos de gelo se desfaziam, com estrépito, ao
serem devorados pelo frio mar. Ao cabo da longa demanda, tantas as semanas que
nem notara o tempo a passar, estava pronto para regressar. Com uma riqueza
incomensurável adestrada pela constelação de paisagens que passaram pela
estreiteza da janela da viagem. Que findou como começou, apesar das terras
estarem em seus antípodas: com a envolvência das neves eternas.
A serventia da viagem fora essa: a
riqueza ensinou a não extrapolar sinais para fora do seu lugar próprio.
Cíclicas, apenas as paisagens entradas pela janela da viagem.
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