20.9.13

À janela da viagem


In http://www.falaturista.com.br/blog/wp-content/uploads/2010/11/patagonia-na-argentina-em-transformacao.jpg
A viagem era uma sucessão de viagens, umas pequenas e outras maiores. Entrecortadas pelo fim da linha do autocarro ou do comboio, quando era preciso mudar para outro comboio ou outro autocarro. A lição fora estudada em casa: haveria uma constelação de paisagens à medida que a viagem fosse descendo de norte a sul. Prometera um lugar contínuo à janela e declarara guerra ao sono. Não queria perder de vista as paisagens por onde haveria de passar. Dormir, seria parcial desperdício da viagem. Reservaria a noite para ordenar ao sono que ficasse em dia (quando a noite não reclamasse outras experiências).
No mais alto norte que a viagem teve, viajou cercado pelas neves eternas montadas em montanhas num encadeamento sem fim. Veio atrás do perfume do oceano Pacífico, o comboio desfilando entre as rochas arredondadas encimadas por musgo vicejante, a vegetação outonal refletindo o acobreado no mar sereno antes de ser desarrumado pelas tempestades invernais. Sulcou os pedregosos desertos secos, ausentes de vegetação, numa paisagem crua que parecia desprovida de vida. Nos apeadeiros onde os passageiros saíam para se refrescarem, até as pessoas pareciam mortos-vivos consumidos pelo seco calor. Os catos eram o medonho retrato da paisagem insalubre e, todavia, imersa numa misteriosa moldura – talvez fosse o imaginário dos western vistos na adolescência, ou da música com ramificações na região. À medida que a distância se encurtava para a paisagem que haveria de derrotar as pradarias, inquietou-se com a crisálida de répteis que descansavam nos subúrbios empoeirados da estrada.
Perto do equador, outra paisagem, outro clima, gentes tão diferentes. O cheiro a latinidade fazia lembrar a terra-mãe que deixara na demanda de viajante. Embrenhou-se em florestas tropicais, onde a densidade das árvores não deixava o sol entrar, nem sequer pressentir o chão onde os pés podiam pisar. Frequentou bares com ocasionais companhias, dir-se-ia, duvidosos os seus pergaminhos. Mergulhou na idiossincrasia das gentes e aceitou convites para substâncias que não conhecia. Um dia acordou três dias mais tarde, deposto pelo torpor das mistelas consumidas (veio a saber depois). Avançou às alturas, onde o ar rarefeito convivia com um calor asfixiante, nos lugares onde a humidade se impregnava por dentro dos poros, encharcando a pele com um suor fétido e pegajoso. Visitou templos de outrora, templos abandonados e sem sacerdotes – e não deixou de compaginar a analogia com o possível devir das religiões de agora.
Milhares de quilómetros a sul, quando a terra se encolhia e os dois mares prometiam junção, fez-se à solidão da paisagem ungida pelo frio glaciar do inverno que então fazia. Voltou a ter por companhia montanhas repletas de neves eternas. Desfez-se no encantamento de um glaciar ao ver como os épicos blocos de gelo se desfaziam, com estrépito, ao serem devorados pelo frio mar. Ao cabo da longa demanda, tantas as semanas que nem notara o tempo a passar, estava pronto para regressar. Com uma riqueza incomensurável adestrada pela constelação de paisagens que passaram pela estreiteza da janela da viagem. Que findou como começou, apesar das terras estarem em seus antípodas: com a envolvência das neves eternas.
A serventia da viagem fora essa: a riqueza ensinou a não extrapolar sinais para fora do seu lugar próprio. Cíclicas, apenas as paisagens entradas pela janela da viagem.

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