29.5.15

O direito constitucional ao piropo (quinto episódio do piropo)

Ena Pá 2000, “És cruel”, in https://www.youtube.com/watch?v=EcMxQnPlueQ
Entro no café do costume antes do ginásio. É só um bocado depois da alvorada, mas os camionistas, trolhas e quejandos que frequentam o café já estão ao balcão em converseta com o dono do estabelecimento. (Aguento bem a acusação de fascismo social que alguns destilam se lerem estas palavras. Como ficará demonstrado pelo fio condutor do texto.)
Hoje, o assunto eram os piropos. Porventura, a sua maior destreza semântica. Um conviva queixava-se da reação desabrida (o adjetivo é da minha lavra) de uma donzela (também é da minha autoria) quando ele, encantado com os dotes físicos que desfilavam diante dos olhos, flatulou um piropo. O homem jurava não perceber a repreensão da senhora. Um piropo é, na sua maneira de ver, um elogio a mulheres que se distinguem pela beleza ou pelas formas curvilíneas que convocam certas fantasias. Não interessava que as palavras usadas roçassem o ordinário, que é difícil fazer um autoexame à boçalidade.
O injustiçado protestava. Julgo que não seria difícil encontrar nas entrelinhas do protesto o sentimento marialva de que as mulheres não devem calar um piropo porque os homens que os proferem são superiores na ordenação da espécie. Para rematar o relambório, o especialista em piropos foi assertivo: “o que está à mostra é para ser visto. Se elas não querem que a malta mande umas bocas, que não se ponham tanto à mostra.” (Não asseguro transcrição fiel, mas foi mais ou menos isto.)
Não dou para o peditório das feministas exacerbadas que já propuseram a criminalização do piropo. É preciso ter a noção dos limites. Um piropo pode incomodar. Mas se tudo que incomodar for crime e der direito a estadia na cadeia, não chegam os presídios que temos para alojar tanto meliante. Daí até alinhar ao lado da boçalidade de trolhas, camionistas e quejandos, vai um abismo. (Nos quejandos está, porventura, gente de suposta linhagem que não consegue reprimir a incontinência verbal ao esbarrar numa mulher lúbrica.) Se uma mulher não pode pôr “tanto à mostra” para não correr o risco de ser bombardeada por um piropo, melhor será os boçais que o defendem (conheço alguns juízes que alinham na retórica) ditarem um código de conduta e outro de vestuário imperativo para as mulheres.
Mais valia condená-las a uma forma qualquer de burca. Os boçais só não o fazem porque as hormonas sentiriam falta de se embeiçarem por mulheres lascivas. E a língua travada, por falta de piropo, podia-se enferrujar.
(Os episódios anteriores: 

28.5.15

Benzido por uma estrela no firmamento

Spiritualized, “Shine a Light”, in https://www.youtube.com/watch?v=mY8SyTsgSko
Habituara-se a ser reconhecido na rua. A notar que os outros notavam a sua presença, murmurando o reconhecimento. A fama tinha um preço para alguns famosos. Ele não se fazia esquisito: gostava da fama. Não se importunava com o escrutínio público quando saía à rua. Assim como assim, ninguém anda pela rua a espraiar-se em tristes figuras, por que haveria de se refugiar da rua? Havia quem perguntasse se não sentia ao menos incómodo em sentir-se observado (pois o anonimato resguarda da bisbilhotice)? Também não se importava. A fama exige devoção ao público. Há que dar e receber.
Tudo começou quando veio ao mundo. A mãe contou-lhe que estava uma linda estrela por cima do céu e que essa estrela foi testemunha do parto. Era a estrela que o abençoara para uma vida notável. Ouviu a história desde que se lembra da mãe e depois o avó paterno lhe contarem histórias antes de adormecer. A ideia enraizou-se. Quando a notabilização começou, nunca se esqueceu de agradecer, em preces secretas, à generosa estrela que o apadrinhou. Em paga, quando não estava distraído com as muitas demandas inerentes à fama, dirigia os olhos ao céu e curvava-se, em sinal de agradecimento, perante a estrela que estivesse a cintilar mais. Não importava, como um dia lhe disse um astrónomo ao tomar conhecimento da história piegas, que as estrelas mudem de lugar com a passagem do tempo. A inteligência não era um lugar-tenente.
Gostava de ir a um lugar e sentir que havia pajens que se desfaziam em genuflexões. Gostava de almoçar e jantar sem ter de pagar a conta no fim (obséquio dos donos dos restaurantes). Gostava de ir de férias para onde todos os seus patrícios iam de férias, pois a visibilidade era apenas nacional e uma vez caiu à cama quando foi de férias para o estrangeiro e ninguém o conhecia. Gostava que lhe pedissem autógrafos e fotografias, para os admiradores se imortalizarem com um pedaço de si. Gostava de mordomias várias inerentes ao estatuto.
Podia ser tudo isto. Não fossem as pastilhas em que se viciara. As alucinações são terreno fértil para a esquizofrenia latente.

27.5.15

Governar por sorteio

The Clash, “Guns of Brixton”, in https://www.youtube.com/watch?v=hiQoq-wqZxg
(Manuel Arriaga, Reinventar a democracia: cinco ideias para um futuro diferente, Lisboa, Manuscrito, 2015)
A perfeição é uma ambição humana. Pelo que sabemos da espécie, e de cada um de nós, devíamos saber tratar-se de um sonho que vive paredes-meias com a utopia. Daquelas utopias que sabemos quiméricas. Porque a imperfeição é inata à natureza humana.
Sendo os regimes políticos produto da intervenção humana, o mais certo é estarem eivados de imperfeições. Algumas pessoas resignam-se (por anemia, ou com conhecimento de causa dos obstáculos à mudança). Outras condoem-se, julgam que o limite do aceitável foi ultrapassado quando esbarram nessas imperfeições. É o caso de Manuel Arriaga, que diagnostica um mal de morte à democracia como a conhecemos. O autor não se contenta em fazer o diagnóstico da doença. Arrisca uma proposta de mudança, a reinvenção da democracia.
Sobre o diagnóstico, não há novidades. Os políticos não nos representam, mesmo depois de terem sido eleitos. Estão a soldo dos interesses que movem grandes somas de dinheiro. Agarrando-se à psicologia, Arriaga defende que é natural que os governantes sejam atenciosos aos que com eles amesendam frequentemente, desvalorizando a maioria silenciosa (o povo). É um mecanismo natural (ensina a psicologia comportamental) que, no entanto, fere de morte a democracia. Quem governa deixa de servir os interesses de quem os elegeu.
Arriaga não fica por aqui, desvalorizando as eleições como método adequado de escolha dos representantes. Primeiro, os eleitores não estão informados (como deviam estar) sobre os programas de governação concorrentes. Segundo, os políticos são mestres na arte da dissimulação, corrompendo a lucidez dos eleitores. Terceiro, está vulgarizada, entre o cidadão comum, a ideia que os governantes estão predestinados para congeminarem as políticas que bem fazem ao cidadão. (Nesta ideia, Arriaga contradiz-se: como pode defender que já não nos revemos nos eleitos se, ao mesmo tempo, lamenta uma presunção de competência do cidadão comum nas elites que governam?)
O autor ensaia uma terapia. Se as eleições só nos dececionam – pois os eleitos depressa se esquecem de governar para quem os elegeu –, a democracia deve ser reinventada. Gente comum deve tomar o comando da empreitada. Através de assembleias de cidadãos. Escolhidas por sorteio. Arriaga tenta convencer o leitor, com a ajuda da demografia e da teoria das probabilidades estatísticas, que não vem mal ao mundo em sortear os governantes. Tenta ainda persuadir o leitor que podemos confiar no método, pois cidadãos responsáveis, informados, estudiosos e devidamente aconselhados (e aqui permito-me exibir preocupação...) estão em condições de tomar decisões que, conclui, serão mais sensatas, eficazes e justas. A deliberação demorada entre os sorteados é o método escolhido.
Por mais que Arriaga compulse exemplos de assembleias de cidadãos e de como esses exemplos são meritórios, vou com o pelotão daqueles a quem o autor acusa de serem “pessimistas da realidade”. A governação não se compadece com aleatoriedade. Sermos governados por sorteio pode ser uma ideia que funciona em contextos específicos, ou em laboratórios de ideias. Estender a lógica à governação de um país (e dos países) é um risco que só uma pueril análise pode contemplar.
Pela parte que me toca, cético e desconfiado em relação às elites políticas tão vituperadas por Arriaga, raciocino numa lógica de controlo de danos. Mal por mal, os ineptos que conhecemos em detrimento do buraco negro da governação por sorteio. Churchill continua a saber da poda: a democracia é o pior dos sistemas políticos se descontarmos todos os outros. Apesar do tempo e de todas as patologias que a contaminam.

26.5.15

O homem sem proezas

Jungle, “The Heat”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y4UckOGdZtI&list=PLjpv9dEYYkaDgXK9mynzfGb1sfSFi3x8u&index=3
À volta, desfilam as façanhas. Uma disputa pessoal contra si mesmo, para superiorizar as proezas acabadas de narrar lá atrás. Como se fosse o chamamento do super homem que alguns acham que tem de habitar por dentro, nem que seja no imaginário que se constrói.
Assim como assim, todos somos uma singularidade. Diferentes uns dos outros. A essa diferença, a esse ADN único, cimenta-se um ensimesmar que, se não tiver freios, acaba em narcisismo. Acaba com feitos normais transfigurados em proezas que não estão à mão de semear de mais ninguém. (Nem podia tal coisa suceder: pois os atos vividos por alguém são sempre irrepetíveis; o máximo a que se pode chegar é à semelhança, que, todavia, encerra sempre diferenças.) Como cada um é um ser único, atos transatos são o espelho de feitos que não podem ter a autoria de mais ninguém.
O herói de si mesmo ufana-se de si mesmo. Um raro brilho toma conta do olhar enquanto revive no discurso em primeira pessoa as proezas de antanho. Dir-se-ia, repete as proezas enquanto as passa pelas palavras que são a sua narração. A vaidade escorre pelos poros na decantação da narrativa. Está convencido que teve uma vida repleta. Aos outros, os que se limitaram a uma existência “normal”, atira o opróbrio da monotonia. Acredita que estes foram levados pelo tempo, já que ele, tutor das mais variadas proezas, tomou o tempo nas suas mãos. Não lhe ocorre (por ser reflexo ausente da sua natureza) que há tantas maneiras diferentes de olhar quantos os olhos intérpretes desse olhar.
Não lhe chega ao conhecimento que nesta era repleta de heróis, de tanta gente que se persigna por ser deus em nome próprio (a crer na estatura das proezas e na sua frequência temporal), talvez proeza seja a normalidade. Talvez proeza seja haver quem não reclame créditos de proezas avulsas. Por não as reconhecer como proezas. Ou, porventura, por não ter o trauma da ladainha desinteressante que é a vida e exigir para si mesmo o papel de super herói.

25.5.15

O infinito, duas cartolas e uma pata de presunto

Os Ressentidos, “Galicia Canibal (Fai un sol de carallo)”, in https://www.youtube.com/watch?v=t4SKE2cLuFs
O monte oxigena. É um lugar comum que, contudo, não deixa de remexer com os fundos das convicções. É que no monte, no sítio onde não há pessoas, e apenas fauna e flora com quem partilhar a presença, as viagens interiores ficam nítidas, como se sobre elas se deitassem luzes fluorescentes.
Mas o monte pode ter dias inesperadamente povoados. Nem assim deixa de ser laudatório. Comunga-se folia, foge-se dos fantasmas que são  apoquentação nos lugarejos habitados, esquecem-se as angústias do trabalho e foge-se para o monte. Para onde uma multidão vai em peregrinação e muito álcool é bebido para libertar os espíritos que precisam de asas soltas. O álcool liberta os espíritos para a criatividade.
Dois cartolas dandy sobem o monte vestindo robe. Fazem a festa. E emprestam farra aos demais. Um castiço aparece com uma perna de presunto a tiracolo. Estaciona no terreiro, tira a faca própria para seccionar finas tiras do bácoro fumado e doa-as a quem passa. O irmão despeja-lhe sobre a cabeça dois copos de cerveja, um atrás do outro. E ele ri-se, com o sorriso desembargado de quem está com freio solto. Uns genuínos dançam desajeitadamente a música que soa da gigantesca coluna de som dos dois cartolas artilhados com robe e bonés de camionista. Os barris de cerveja extinguem-se. É a vez do vinho. Não se pode virar a cara à folia e o calor que se pôs deixa as goelas secas, exigindo mais álcool. Ajuda o tempo a passar.
Às vezes, o motivo da reunião de uma multidão no ermo quase no cimo da serra (apreciar automóveis a sulcarem vertiginosamente as estradas que cortam a serra) perde importância. As gentes convivem, falam uns com os outros como se fossem conhecidos de longa data. O castiço da perna de presunto, depois de a dissecar até ao osso, usa os restos mortais ao ouvido, fazendo as vezes de um telemóvel. E a gente restante algazarra.
No fim  da tarde, o monte recupera a aridez. Sobram os vestígios da gente que se levantou de madrugada e aguentou um vento glacial quando a manhã tinha o seu início. A seguir, o monte voltará a ser aquele lugar ermo, quase despido de vegetação, com os imponentes pedregulhos dominando a paisagem. Um naco de infinito sob os pés e diante dos olhos. A que apetece regressar, já despido de gente em folia,  para uma demanda purificadora.