Death
Cab For Cutie, “Transatlanticism”, in https://www.youtube.com/watch?v=hnicZDvKyzU
O chefe é que tinha
poderes (e poder) para assinar mandatos de captura. As regras autocráticas
assim determinavam. Os delfins tratavam de fazer as purgas necessárias contra a
dissidência de pensamento. Os dissidentes não levavam vida fácil. Não podiam
arriscar pensamento diferente, não podiam ter opinião livre, não podiam orar em
público convidando as massas à sublevação. A autocracia mostrava as
fragilidades congénitas ao não admitir dissidências que pudessem hipotecar os
seus alicerces.
Nas purgas, os
dissidentes eram catados como cães sarnentos. Por mais que se escondessem em
refúgios, não havia lugares seguros. A rede de informadores era densa,
insinuava-se em cada casa, até nos lúgubres lugarejos onde os dissidentes se
acoitavam. Mal eram apanhados, tinham direito a julgamento sumário (só para cumprir
um módico de formalismos) e condenados ao degredo em miseráveis condições.
Uma vez, um dos delfins
pediu ao chefe que assinasse um mandato de captura numa folha em branco. O
chefe desconfiou; a veia autocrática medrava a perene desconfiança, até em
relação aos putativos delfins (o chefe sabia das traições no império romano). Assinar
um mandato em branco passava das marcas. Ao início rejeitou. Com firmeza,
afastou a folha em branco para o canto da secretária. A voz de comando, grave
como sempre, afirmou categoricamente: “não
assino uma coisa dessas.” Nem queria sondar as intenções do delfim. Este
antecipou-se à pergunta não feita: “é
para dar ordem de prisão a um dissidente que anda a ter encontros com a minha
mulher.” O chefe sossegou. Era sensível a estes assuntos de solidariedade
marialva. (Corriam rumores que lhe tinha acontecido o mesmo quando estava na
clandestinidade.) Sem pensar, nem quis saber o nome do soez praticante de adultério.
Assinou de cruz o papel em branco.
Duas manhãs depois, pagou
o preço: foi acordado por uma brigada da polícia de choque que o trouxe para os
calabouços. O traído tinha sido ele. Por uma ingenuidade amadora (e a ganância
do poder do delfim). O mandato em branco foi o alvará da escuridão a que se confinou.
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