18.5.15

Mandato em branco (ou: às escuras)

Death Cab For Cutie, “Transatlanticism”, in https://www.youtube.com/watch?v=hnicZDvKyzU    
O chefe é que tinha poderes (e poder) para assinar mandatos de captura. As regras autocráticas assim determinavam. Os delfins tratavam de fazer as purgas necessárias contra a dissidência de pensamento. Os dissidentes não levavam vida fácil. Não podiam arriscar pensamento diferente, não podiam ter opinião livre, não podiam orar em público convidando as massas à sublevação. A autocracia mostrava as fragilidades congénitas ao não admitir dissidências que pudessem hipotecar os seus alicerces.
Nas purgas, os dissidentes eram catados como cães sarnentos. Por mais que se escondessem em refúgios, não havia lugares seguros. A rede de informadores era densa, insinuava-se em cada casa, até nos lúgubres lugarejos onde os dissidentes se acoitavam. Mal eram apanhados, tinham direito a julgamento sumário (só para cumprir um módico de formalismos) e condenados ao degredo em miseráveis condições.
Uma vez, um dos delfins pediu ao chefe que assinasse um mandato de captura numa folha em branco. O chefe desconfiou; a veia autocrática medrava a perene desconfiança, até em relação aos putativos delfins (o chefe sabia das traições no império romano). Assinar um mandato em branco passava das marcas. Ao início rejeitou. Com firmeza, afastou a folha em branco para o canto da secretária. A voz de comando, grave como sempre, afirmou categoricamente: “não assino uma coisa dessas.” Nem queria sondar as intenções do delfim. Este antecipou-se à pergunta não feita: “é para dar ordem de prisão a um dissidente que anda a ter encontros com a minha mulher.” O chefe sossegou. Era sensível a estes assuntos de solidariedade marialva. (Corriam rumores que lhe tinha acontecido o mesmo quando estava na clandestinidade.) Sem pensar, nem quis saber o nome do soez praticante de adultério. Assinou de cruz o papel em branco.
Duas manhãs depois, pagou o preço: foi acordado por uma brigada da polícia de choque que o trouxe para os calabouços. O traído tinha sido ele. Por uma ingenuidade amadora (e a ganância do poder do delfim). O mandato em branco foi o alvará da escuridão a que se confinou.

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