27.5.15

Governar por sorteio

The Clash, “Guns of Brixton”, in https://www.youtube.com/watch?v=hiQoq-wqZxg
(Manuel Arriaga, Reinventar a democracia: cinco ideias para um futuro diferente, Lisboa, Manuscrito, 2015)
A perfeição é uma ambição humana. Pelo que sabemos da espécie, e de cada um de nós, devíamos saber tratar-se de um sonho que vive paredes-meias com a utopia. Daquelas utopias que sabemos quiméricas. Porque a imperfeição é inata à natureza humana.
Sendo os regimes políticos produto da intervenção humana, o mais certo é estarem eivados de imperfeições. Algumas pessoas resignam-se (por anemia, ou com conhecimento de causa dos obstáculos à mudança). Outras condoem-se, julgam que o limite do aceitável foi ultrapassado quando esbarram nessas imperfeições. É o caso de Manuel Arriaga, que diagnostica um mal de morte à democracia como a conhecemos. O autor não se contenta em fazer o diagnóstico da doença. Arrisca uma proposta de mudança, a reinvenção da democracia.
Sobre o diagnóstico, não há novidades. Os políticos não nos representam, mesmo depois de terem sido eleitos. Estão a soldo dos interesses que movem grandes somas de dinheiro. Agarrando-se à psicologia, Arriaga defende que é natural que os governantes sejam atenciosos aos que com eles amesendam frequentemente, desvalorizando a maioria silenciosa (o povo). É um mecanismo natural (ensina a psicologia comportamental) que, no entanto, fere de morte a democracia. Quem governa deixa de servir os interesses de quem os elegeu.
Arriaga não fica por aqui, desvalorizando as eleições como método adequado de escolha dos representantes. Primeiro, os eleitores não estão informados (como deviam estar) sobre os programas de governação concorrentes. Segundo, os políticos são mestres na arte da dissimulação, corrompendo a lucidez dos eleitores. Terceiro, está vulgarizada, entre o cidadão comum, a ideia que os governantes estão predestinados para congeminarem as políticas que bem fazem ao cidadão. (Nesta ideia, Arriaga contradiz-se: como pode defender que já não nos revemos nos eleitos se, ao mesmo tempo, lamenta uma presunção de competência do cidadão comum nas elites que governam?)
O autor ensaia uma terapia. Se as eleições só nos dececionam – pois os eleitos depressa se esquecem de governar para quem os elegeu –, a democracia deve ser reinventada. Gente comum deve tomar o comando da empreitada. Através de assembleias de cidadãos. Escolhidas por sorteio. Arriaga tenta convencer o leitor, com a ajuda da demografia e da teoria das probabilidades estatísticas, que não vem mal ao mundo em sortear os governantes. Tenta ainda persuadir o leitor que podemos confiar no método, pois cidadãos responsáveis, informados, estudiosos e devidamente aconselhados (e aqui permito-me exibir preocupação...) estão em condições de tomar decisões que, conclui, serão mais sensatas, eficazes e justas. A deliberação demorada entre os sorteados é o método escolhido.
Por mais que Arriaga compulse exemplos de assembleias de cidadãos e de como esses exemplos são meritórios, vou com o pelotão daqueles a quem o autor acusa de serem “pessimistas da realidade”. A governação não se compadece com aleatoriedade. Sermos governados por sorteio pode ser uma ideia que funciona em contextos específicos, ou em laboratórios de ideias. Estender a lógica à governação de um país (e dos países) é um risco que só uma pueril análise pode contemplar.
Pela parte que me toca, cético e desconfiado em relação às elites políticas tão vituperadas por Arriaga, raciocino numa lógica de controlo de danos. Mal por mal, os ineptos que conhecemos em detrimento do buraco negro da governação por sorteio. Churchill continua a saber da poda: a democracia é o pior dos sistemas políticos se descontarmos todos os outros. Apesar do tempo e de todas as patologias que a contaminam.

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