Spiritualized,
“Soul on Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=yuEOqzs76sE
Na
sala de espera, à espera de vez para a vacina. Duas senhoras partilham a sala
de espera comigo. Estão sentadas em filas diferentes. A mais velha parece alquebrada.
Mete a cabeça entre os joelhos e suspira longamente. A da frente nota no
suspiro e desvia o olhar para trás. Pergunta se a senhora se está a sentir bem.
A mulher levanta a cabeça dos joelhos e desenfia um rosário de queixas. Para
começar: que nunca tinha tomado antidepressivos e não andava com boa disposição
desde que começou a medicação.
Sem
demora, pega nos haveres que estavam pousados na cadeira do lado e toma um
lugar ao lado da mulher mais nova. Começa a contar a história pessoal, os
acidentes de percurso recentes que levaram um médico a receitar antidepressivos,
o pouco (e mal) que dorme, que é do Porto – e por aí fora. Teve sorte. A outra
mulher dá a impressão que se interessa mais pela vida dos outros, a atestar
pela atenção, até pelo enternecimento, com que ofereceu o ombro para os prantos
da amiga acabada de fazer. O que a mulher estava a precisar era de
alguém com quem conversar. Não precisava de antidepressivos.
Não
é a primeira vez que em espaços públicos reparo em amizades furtivas, feitas no
momento, entre duas pessoas que até parecem conhecidas de longa data, e de como
alguém desnuda a vida perante outro que uns instantes antes era desconhecido.
Não admira que a coscuvilhice seja passatempo de muita gente. Se gente assim
não tem vergonha em pôr toda a vida à mostra mesmo para quem seja desconhecido,
é gente que faz questão em tomar conhecimento das vidas alheias que sejam
viradas do avesso para a praça pública.
É
como se pessoas assim andassem à procura de um imenso guarda-chuva como colo
para as angústias. Aceitando servir – pois os preceitos da religião ensinam que
devemos ser uns para os outros – de guarda-chuva quando os lamentos de um
desconhecido precisem de abrigo. Só que este guarda-chuva é às avessas. É como
se estivesse aberto com a parte côncava assente no chão. Só assim o
guarda-chuva pode receber as águas das apoquentações alheias, ser seu cais.
(Se estivesse na posição
normal, as águas atormentadas deslizavam pelas abas do guarda-chuva a
perdiam-se no chão. No chão da indiferença.)
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