12.5.15

O ancião boémio

Morphine, “French Fries”, in https://www.youtube.com/watch?v=2n7yOkeFJMM
Tinha muitas dúvidas. Existenciais, algumas. Entre o conglomerado de dúvidas soerguiam-se duas certezas perenes. Não seria o exemplo do que se convencionou chamar “boa pessoa”. E, pelo temor da morte, retardava o envelhecimento o mais que conseguia. Intuía que as duas certezas tinham correlação. Hesitava em discernir a causa e o efeito.
Havia alturas em que era assoberbado pela hipótese do mau fundo ser a causa da boémia tardia. O que o emergia em contradições sucessivas, a mais pungente das quais era uma interrogação a que não conseguia, por mais que tentasse, dar resposta: se ele era o primeiro a reconhecer que os seus maus pergaminhos quando muito serviam para ensinar às criancinhas a antítese dos preceitos da moral, que sentido fazia prolongar a vida? E que sentido fazia prolongá-la como se fosse um festim, para provar a si mesmo que conseguia, no tempo de vida que tivesse viver, o equivalente a duas ou três vidas usuais?
Outras vezes, desconfiava que ter ensimesmado a ideia do adiamento da morte, e de que tem de sugar o tutano todo da vida, era a causa de ser pessoa não recomendável. Era o campo fértil de todos os maus vícios, assim conotados pela sociedade que prega os bons costumes. E ele admitia que os bons costumes eram bons costumes, sem cinismo. Mas os instintos eram uma força sem freio. Conduziam-no aos lugares onde havia vícios, mesmo daqueles que se julgavam decadentes a julgar pela idade que levava. Não se importava com as más palavras que os outros diziam sobre si. Sabia que se fosse compulsado como exemplo, figurava como protótipo do antissocial.
O ancião boémio não cedia perante as dores de consciência. Tinha-as, é certo. Depressa os instintos derrotavam a convocatória da consciência. Era como se os planos estivessem invertidos. E a consciência que povoava algumas dores, sem desatar arrependimento algum, fosse o mau espírito a querer embaciar os prazeres que vícios vários traziam por encomenda dos instintos irrefreáveis. De resto, não era caso isolado. Havia outros que coincidiam no vício da bebida. Outros a partilharem o vício do jogo. Outros que combinavam no ardil das drogas. E muitas donzelas, de todas as idades e condições sociais, que sucumbiam ao charme que não capitulava diante da sexagenária condição.
Todas as manhãs tardias, ao acordar, renovava o voto interior que o comandava. Queria o túmulo ornamentado com flores garridas a encimarem o lema que legava aos demais no seu decesso: “parti sem arrependimentos. Suguei todo o tutano da vida. Por isso tive tantos invejosos.

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