Morphine, “French Fries”, in https://www.youtube.com/watch?v=2n7yOkeFJMM
Tinha
muitas dúvidas. Existenciais, algumas. Entre o conglomerado de dúvidas soerguiam-se
duas certezas perenes. Não seria o exemplo do que se convencionou chamar “boa
pessoa”. E, pelo temor da morte, retardava o envelhecimento o mais que conseguia.
Intuía que as duas certezas tinham correlação. Hesitava em discernir a causa e
o efeito.
Havia
alturas em que era assoberbado pela hipótese do mau fundo ser a causa da boémia
tardia. O que o emergia em contradições sucessivas, a mais pungente das quais
era uma interrogação a que não conseguia, por mais que tentasse, dar resposta:
se ele era o primeiro a reconhecer que os seus maus pergaminhos quando muito
serviam para ensinar às criancinhas a antítese dos preceitos da moral, que sentido
fazia prolongar a vida? E que sentido fazia prolongá-la como se fosse um
festim, para provar a si mesmo que conseguia, no tempo de vida que tivesse
viver, o equivalente a duas ou três vidas usuais?
Outras
vezes, desconfiava que ter ensimesmado a ideia do adiamento da morte, e de que tem
de sugar o tutano todo da vida, era a causa de ser pessoa não recomendável. Era
o campo fértil de todos os maus vícios, assim conotados pela sociedade que
prega os bons costumes. E ele admitia que os bons costumes eram bons costumes,
sem cinismo. Mas os instintos eram uma força sem freio. Conduziam-no aos
lugares onde havia vícios, mesmo daqueles que se julgavam decadentes a julgar
pela idade que levava. Não se importava com as más palavras que os outros
diziam sobre si. Sabia que se fosse compulsado como exemplo, figurava como protótipo
do antissocial.
O
ancião boémio não cedia perante as dores de consciência. Tinha-as, é certo.
Depressa os instintos derrotavam a convocatória da consciência. Era como se os
planos estivessem invertidos. E a consciência que povoava algumas dores, sem
desatar arrependimento algum, fosse o mau espírito a querer embaciar os
prazeres que vícios vários traziam por encomenda dos instintos irrefreáveis. De
resto, não era caso isolado. Havia outros que coincidiam no vício da bebida.
Outros a partilharem o vício do jogo. Outros que combinavam no ardil das
drogas. E muitas donzelas, de todas as idades e condições sociais, que
sucumbiam ao charme que não capitulava diante da sexagenária condição.
Todas as manhãs tardias,
ao acordar, renovava o voto interior que o comandava. Queria o túmulo
ornamentado com flores garridas a encimarem o lema que legava aos demais no seu
decesso: “parti sem arrependimentos. Suguei todo o tutano da vida. Por isso
tive tantos invejosos.”
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