Portishead,
“Sour Times”, in https://www.youtube.com/watch?v=niIcxMuORco
- Não gosto que me fotografes.
- ...Porquê?!
- Não fico à vontade. Sinto que a câmara é uma intrusa em mim. Rouba um
pedaço de identidade. E rouba um pedaço do tempo só meu. Imortalizado nesse
retrato, deixa de ser só meu.
- Receias que os meus
olhos, através da câmara, sejam intrusos?
- Não foi isso que disse.
- Mas, sabes?, a maior
parte das pessoas gosta de se ver em fotografias. É um espelho do tempo, o
repositório das memórias que não são apenas o esteio da memória imaterial.
- Percebo que haja quem não se importe de ser fotografado. Eu sou
diferente: incomodam-me os retratos, todos os retratos. Aqueles em que sei que
há uma máquina fotográfica apontada a mim. É como se tivesse uma arma pronta a
disparar, a bala fazendo as vezes do fragmento de mim reproduzido na imagem. E também
me apoquentam aqueles retratos tirados na minha distração.
- Não te importa ires à
poeira do tempo devolver um pedaço de ti que se cumpriu nesse pretérito?
- Não. Não quero. Não é por acaso que tenho poucas fotografias em casa.
- Não me acredito que
tenhas sido tão sistemático (e teimoso) durante todo este tempo ao ponto de
quase não guardares fragmentos visuais do que foste. Vais-me dizer que rasgaste
fotografias que não te convinham...
- Admito que rasguei algumas. Já sei que me vais acusar de um intolerável
deletério do tempo, como se houvesse vergonha desse passado, ou se algum dele
não mereça pertencer ao alfobre das recordações. Corro conscientemente esse
risco. E, devo-te dizer, não me importo.
- Acreditas que consegues
diluir os fragmentos do tempo com o rasgar de fotografias?
- Ajuda. Mas isso não vem ao caso. Estavas-me a desafiar para uma
fotografia. E eu a explicar a minha dissonância com as fotografias.
- Não ajuda dizer-te que
as fotografias são como a nossa segunda pele, uma pele que não sofre com a erosão
do tempo?
- Não vejo como isso sirva de ajuda. Só reforça a minha incompatibilidade
com as fotografias. Não vives do que eras nas fotografias que te tiraram. Vives
do que és.
- Ainda não estou
convencida...
- E se te disser, para fim de conversa, que as fotografias tiram-me um
pedaço da alma?
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