22.5.15

A palavra devolvida

Electric Wizard, “Funeralopolis” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EU0TUR-o6gE
Ambiente pesado. Era da música. E do fumo, o muito fumo, o que vinha do palco na encenação das trevas que devia combinar com a função. E do fumo do tabaco, e de outras substâncias fumadas não tão lícitas. Ele escutava a música. Absorto. Com os olhos fechados – não precisava de ver os músicos no desempenho da função. Abanava a cabeça em harmonia com os acordes roucos encimados pela voz gutural.
Sabia que, junto ao palco, a tribo habitual espanava os largos cabelos em sintonia com a música. Ele, que não era da tribo habitual, mas tinha dias que gostava de meter música pesada para os neurónios, reservara-se a um lugar mais distante. À medida que a música seguia o seu caminho, mantendo os olhos fechados ao que se passava, desfilavam paisagens mentais que corriam a preceito. Caves escuras frequentadas por homens barbudos, indumentária negra e povoada por cabedal, prolixas tatuagens. Mulheres másculas, olhares sempre medonhos, tacões altos, bijutaria diversa, com preferência para o cabedal. (E como seriam os prazeres com essas mulheres?). Muitas tatuagens invocando anjos negros, demónios vingados, outros motivos em forma de provocação às convenções, heresias a rodos. Ele, que não era da tribo, que não tinha sinais exteriores de identificação com a tribo, havia dias em que sentia um terrível apelo por este imaginário.
A música avançava como sismos indomáveis fazendo tremer os alicerces interiores. E ele via-se a entrar nas caves fundas, a pisar o chão escuro e húmido, o ambiente pesado a tomar conta de si, a sentir os olhares de reprovação deitando-se sobre si. Por não ter os sinais de identificação com a tribo, ousando entrar na cave funda e escura vestindo elegante fato e gravata e sapatos com pergaminhos italianos, impecavelmente apessoado mas não para os trâmites da tribo subterrânea. Sem se intimidar por o verem como um corpo estranho naquele microcosmos. Mantinha os olhos fechados, meteu-se a adivinhar a reação da tribo. Podia ser que o julgassem por provocação, correndo a expulsá-lo por ser peixe fora de água. Ou podia ser que a tribo transgressora das convenções não pusesse de lado os princípios e, como transgressora, aceitasse uma transgressão ao seu código de conduta dentro dos seus próprios aposentos.
Quando abriu os olhos, já estava a dois passos do palco. Imerso entre o mosh da tribo habitual. Ninguém reparou na sua presença.

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