5.5.15

No outsourcing das emoções

Joy Division, “Transmission”, in https://www.youtube.com/watch?v=6dBt3mJtgJc
Imperturbável. Fleumático. Adestrado para não mostrar as cores das emoções. Que se saiba, nunca lhe viram lágrimas. Nem sequer os olhos marejados. Nunca viram sorrisos desalfandegados, menos ainda espadas terçadas a gargalhadas que aprouvessem. Era como se fosse feito de gelo. Mas de um gelo ainda mais duro que o gelo a que estamos habituados.
Diziam, os que o conheciam, que disfarçava as emoções. Pois não era possível a alguém de humana têmpera encravar as emoções no êmbolo da garganta, no gargalo das pálpebras, no musgo da epiderme. Outros insinuavam que não havia ardil, que o homem fora feito à prova de emoções. Diziam que aprendeu com o meio hostil. Aprendeu com aqueles a quem o tempo trouxe o derrame das emoções a que se haviam entregado sem tergiversações, e depois foram consumidos pela astuta feição das emoções. Era como se tivesse vestido uma carapaça e tivesse investido para a tornar inexpugnável.
Insensível aos malefícios que se acometiam sobre os mais ousados. Insensível às privações dos miseráveis. Não sabia da existência de aniversários, nem queria que os outros se lembrassem do seu. Os afetos eram matéria desconhecida. Recusava os outros e não perdia o sono por os outros o terem como personagem esquiva. À sua volta, só havia um deserto de pessoas e de coisas, a julgar pelo desinteresse nos assuntos que a outros cativava a atenção e desembainhava emoções. Um dia, alguém lhe perguntou se lembrava quando tinha chorado pela última vez. Enfiou careta circunspeta, desviou o olhar para o jornal gratuito que repousava na mesa do lado e eclipsou olimpicamente o assunto. Desarmada, quem o tinha interpelado desaprovou a teimosia que daria caução à repetição da pergunta. As pessoas sentiam que aquele homem encomendava as emoções suas a entidades alheias. Era como se outros tivessem, na sua vez, as dores de parto das necessárias emoções.
A páginas tantas, alguém o apanhou em contravenção com a metódica forma de estar. Na exígua casa de banho de um café, alguém deu com a fleumática personagem imersa em lágrimas, num choro convulsivo. A pergunta repetiu-se e repetiu-se, enquanto o homem em prantos se acolhia no regaço de quem o encontrou neste estado: “o que se passa contigo?” E ele, por fim, decaiu na resposta, despedaçando a pétrea capa de gelo que o envolvia. Pensou, por uns instantes, em responder com a verdade que o apoquentava. Teria de admitir que “ninguém gosta de mim”. Noutro acesso de fleuma metódica, retorquiu, enquanto o choro convulsivo parou de repente: “o meu contrato de outsourcing das emoções terminou e não tenho dinheiro para o revalidar”.

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