A
Naifa, “Inquietação”, in https://www.youtube.com/watch?v=WavxYtR2AqY
O
senhor de meia idade sai, com classe, do automóvel topo de gama. Impecavelmente
apessoado, roupas da cor a condizer, gestos aristocráticos, senta-se à mesa do
restaurante. Não tira o casaco - que é falta de etiqueta. Fala gentilmente com a
empregada de mesa. Faz o pedido sem gesticular e sem que quem amesenda ao lado
perceba o que foi encomendado; o tom de voz foi discreto, mas percetível.
Quando
vem o almoço, o senhor de meia idade e linhagem aristocrática não perde a
descompostura. Sem pousar os cotovelos na mesa, começa a ingerir o repasto em
gestos lentos e suaves. A deglutição é a preceito. Nota-se o gabarito pela
maneira como é adestrado no manusear dos talheres. Pousa-os de tal forma que
seja interpretado pelos empregados do restaurante como sinal de gratificação pela
refeição. Como não é arrivista e não precisa de dar nas vistas, consegue manter
pose discreta mas que afivela à distância linhagem aristocrática. Não quis
sobremesa. Ao pagar, deixa gorjeta generosa. Levanta-se com discrição, empurra
a cadeira com suavidade e despede-se cortesmente dos empregados do restaurante.
Cá
fora, quase tropeça num homem que terá a mesma idade. Traz a tiracolo uma pochette e usa sandálias. A camisa gasta
e escura transborda o cinto das calças. Pelo esgar, nota-se o incómodo por quase
ter esbarrado em tão aristocrática personagem. Imagina os trejeitos de etiqueta
do figurão sentado à mesa do restaurante. Reprova a etiqueta, dando por assente
que gente deste calibre fica presa ao simbolismo dos gestos e não dá atenção à
matéria substancial. Não entende que está a ser tão preconceituoso como os
preconceitos que atesta ao fleumático homem que, imediatamente, leva com o
rótulo de monárquico. Não se importa de ser um paradigma de anti-etiqueta. Faz
questão em não ter modos à mesa; não que os desconheça, apenas faz questão de
transitar pelos seus antípodas, desdenhando da etiqueta por desprazer por quem
a cultiva.
E
o narrador, ao ser observador de ambos os exemplares da fauna social, fica
desorientado. O que mede os preconceitos em que acantona o outro talvez seja
mais preconceituoso ainda. E a denúncia de preconceitos sobre os preconceitos
pode representar uma terceira camada de preconceito. O narrador da história
fica inquieto ao tropeçar nos seus próprios preconceitos.